sobre não haver “som” nem “silêncio”, que são categorias que classificam aspectos da realidade. Ao negar a existência de ambas, o eu-lírico afasta-se do pensamento articulado e constitui um gesto mais sutil, de superar os contrários: tanto “som” quanto “silêncio” são abolidos. É um dado que reforça a suspeita de que esse eu-lírico se encontre num estado de consciência meditativo. Porém em seguida há um paradoxo: “silêncio é coisa sem senso, / não cesso de observar”: para observar é necessário estar atento, noutras palavras, é preciso pensar articuladamente. Talvez represente um momento em que o estado meditativo do eu-lírico é interrompido. Nos versos seguintes, “mistério, algo que, penso, / mais tempo, menos lugar”, também há um paradoxo, agora entre as categorias de “tempo” e “lugar”. Quanto mais o eulírico “pensa” – e aqui nossas suspeitas se confirmam: ele pensa articuladamente – mais ele se afasta de uma compreensão sobre o “mistério”, por isso é “algo sem censo”. No terceiro momento o eu-lírico fala de um “sono solto”, ou seja, um estado de consciência similar ao que encontramos no primeiro, quando estaria “dormindo”: “Quando o mistério voltar, / meu sono esteja tão solto, / nem haja susto no mundo / que possa me sustentar”. Nenhum “susto”, ou seja, nenhuma intempérie poderá interromper seu estado de consciência. Cabe observar um jogo anagramático entre “susto” e “sustentar”: SUSTo e SUSTentar, compondo uma falsa etimologia, mas constituindo um efeito de correspondência entre os termos. Visto que “susto” é um obstáculo para o pensamento meditativo, o anagrama sugere que o indivíduo “desperto”, que pensa articuladamente, é “sustentado”, isto é, carregado, pelo “susto”, ou seja, pelo erro: as faculdades intelectuais submetem a uma compreensão dentro de categorias convencionais.

A segunda estrofe compreende o quarto momento. Articula-se integralmente a categoria de “mistério”, e o momento em que está presente: “Meia-noite, livro aberto. / Mariposas e mosquitos / pousam no texto incerto. / Seria o branco da folha, / luz que parece objeto? / Quem sabe o cheiro do preto, / que cai ali como um resto? / Ou seria que os insetos / descobriram parentesco / com as letras do alfabeto?”. O tempo na estrofe é “meia-noite”, o mesmo que permanece sugerido nos primeiros versos da primeira estrofe: “de sábado para domingo”. É o ponto de encontro entre eu-lírico e “mistério”, é um instante. O núcleo da

estrofe, por sua vez, caracteriza-se por um evento: o “pouso” de “mariposas” e “mosquitos” numa “folha” com um “texto incerto”. A partir desse evento, o eu-lírico elenca uma série de questionamentos que tem como base comum o motivo que ocasionou o “pouso”. Foi por causa do “branco da folha”? Do “cheiro do preto” da tinta que está na folha? Ou devido a um possível “parentesco” entre “insetos” e “letras do alfabeto”?

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 154-169, 2016. ISSNe 2175-7917