à selva da urbe como um porvir de civilidade. Operando como pátio de demarcação de territórios e estandartes sociais, a rua é também rio onde todas as tipif1cações podem vir a se perder. Mãe e madrasta, doméstica e política, a cidade chama, seduz e assusta, acolhe e expulsa o bicho-homem. “Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! Ainda não fala e já a assustam: se você for para a rua, encontra o bicho!” (RIO, 2008a, p. 40). A rua vicia e alicia, atrai, corrompe e contamina. “Foi feita para ajuntamentos”, segundo o africano eubá, esperanto das hordas selvagens. “Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da rual”, grita ainda o cronista das calçadas. Rua é, pois, lugar de cachorros vagabundos e gente vira-lata!

Porque insinua a nudez da Gênesis, atraindo todos para fora de suas tocas, de suas ocas, para eXporem-se ao olho público, a rua evoca a infância do mundo. “A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas.” Zona de indiscernibilidade entre homem e bicho, civilização e barbárie, “a rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo” (RIO, 2008a, p. 41). O convite da rua é para a criança o que a floresta é para o tigre ou a liberdade é para os pássaros.

Em Crítica e Clínica, Deleuze (1997) opõe-se ao modo pelo qual a psicanálise freudiana interpreta a travessia da rua pelo pequeno Hans, como se ela fosse um meio neutro que levaria a um lugar previsível do qual ele deverá inexoravelmente regressar para o seio da mãe. Desejo de rua tem força própria, advoga o filósofo: Hans quer mais do que sair do apartamento da família para ir ao restaurante e retornar ao lar. No caminho, ele passa pelo entreposto de cavalos onde muitas cenas podem acontecer e o trajeto toma-se um lugar em si que, produzindo afetos em quem o transita, “se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio.” (DELEUZE, 1997, p. 83).

Lugar potencial de devires imprevistos e plenos de libido política, social, fllosóflca, poética, rua é lugar do fora: ao mesmo tempo em que mapeia, desterritorializa o conteúdo civilizado e familiarizado, desorganizando e confundindo pessoas e objetos flxados em favor de cartograf1as afetivas. Trajetos são possibilidades de retorno transformado para o qual os pais não são modelo, mas interdito. Trajetos são devires, mapas de intensidade e densidade, define Deleuze (1997, p. 86-87). Fábrica de produção de agenciamentos, atrações, deslocamentos, devires, o inconsciente de rua não se deixa controlar como um palco de representações civilizatórias. Delirar, não interpretar o seu impacto: “Era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua, sangrento, tudo isso...” (DELEUZE, 1996).

Tomada como acontecimento, a “visão de rua” não se produz na extensão de uma

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 11-31, 2016. ISSNe 2175-7917