primeiro antropófago barroco-brasileiro.

O interesse da metáfora antropófaga se concentra no outro – eu mordo o que posso —, devora-se o outro. Nesse sentido, a primeira frase do Manifesto Antropófago “a antropofagia nos une” demonstra esse pensamento de que o que me interessa é o outro e não aquilo que é meu, ao contrário, “só me interessa o que não é meu”. Por isso, conclui João Almino (2011, p. 55):

A cultura brasileira não é, portanto, insular e voltada unicamente para suas raízes, para o solo nacional, [...] nem, por outro lado, se insere, de forma secundária ou subordinada, numa civilização universal centrada na Europa. Está não apenas aberta ao outro, mas preparada para devorá-lo.

Essa é uma ideia altamente coerente com aquilo que pregou Oswald de Andrade em seu Manifesto, pois descarta o que se diz sobre o nacionalismo ufanista apregoado nas malhas da modernidade. O movimento de vanguarda no Brasil surgiu a partir de uma viagem de Oswald de Andrade à Europa, que ali foi influenciado pelas ideias futuristas. O Brasil, nesse sentido, realizou o processo de imitação, que se compara ao ato antropofágico de devoração como nos ritos canibais. Oswald foi antropófago mesmo antes de produzir o Manifesto. Foi devorando o outro, absorvendo-lhe o melhor que a Europa tinha para ruminar aqui no Brasil.

Essa é a razão pela qual Gregório de Matos é considerado o nosso primeiro antropófago, pois devorou a cultura do outro (Gregório de Matos era simultaneamente o outro e ele mesmo, devorando e devorando-se) para regurgitá-la aqui, formando a cultura brasileira. Quando o Modernismo se volta para o passado na busca da origem de nossa identidade, o faz pelo processo antropofágico, sendo o poeta baiano a expressão antropofágica brasileira. Rever o passado significa digeri-lo na tentativa de assimilar o outro que há nele. Nessa perspectiva, considera Viviana Gelado (2006, p. 32): “praticar a antropofagia cultural é digerir simbolicamente a tradição cultural para poder ser capaz de ultrapassar o modelo que ela impõe e criar, a partir de uma atitude criativa e dessacralizadora, um modelo próprio [...]”.

A teoria da antropofagia em si aponta para o rito canibal[1] de devoração do inimigo,


  1. Um dos autores que influenciam diretamente Oswald de Andrade para a formulação do Manifesto Antropófago foi Michel de Montaigne. O ensaísta francês, num ensaio chamado “Sobre os Canibais”, vai discorrer sobre o mau selvagem, o homem que vivia do outro lado do Atlântico, o canibal. A partir de relatos sobre essa terra e sobre seus habitantes, Montaigne conclui que eles nada têm de bárbaros, “acho que não há nada de bárbaro e de selvagem nessa nação”, pensa assim porque ser bárbaro é ser alheio aos costumes do outro, e nesse sentido, os europeus também poderiam ser considerados bárbaros desde o campo de visão dos canibais. E baseado nesse pensamento, o ensaísta defende o canibal considerando que não há diferença em comer um vivo de comê-lo morto, isto é, faz uma crítica para as atrocidades das guerras, das torturas inquisitoriais, etc.: “penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 46-57, 2016. ISSNe 2175-7917