realizado não como produto da fome, mas como representação metafórica da absorção da força, do poder. O uso do canibalismo para explicar a antropofagia foi indigesto para a sociedade da época porque relembrava o ato de comer a carne humana. A intenção era esta: provocar estranhamento. Num outro poema gregoriano, o poeta faz menção ao rito canibalesco:

A Cosme Moura Rolim insigne mordaz contra os filhos de Portugal

Um Rolim de Monai Bonzó Bramá
Primaz do Greparia do Pegu,
Que sem ser do Pequim, por ser do Açu,
Quer ser filho do Sol nascendo cá.

Tenha embora um Avô nascido lá,
Cá tem três para as partes do Cairu,
Chama-se o principal Paraguaçu
Descendente este tal de um Guinamá.

Que é fidalgo nos ossos, cremos nós
Que nisto consistia o mor brasão
Daqueles, que comiam seus avós.

E como isto lhe vem por geração,
Tem tomado por timbre em seus teirós

Morder, aos que provém de outra Nação. (MATOS, 1999, p. 641-642, v. 1)

A cartilha da antropofagia ditava o repúdio ao elemento estrangeiro, mas o pai dessa mesma teoria foi ao estrangeiro buscar sua fonte inspiradora. Disso resulta a essência do Manifesto Antropófago, uma vez que o repúdio se dá no nível da submissão aos ditames estrangeiros. O que é bom é para ser devorado. O inimigo mais forte era devorado a fim de que sua força fosse assimilada pelo canibal, o que ocorre também na metáfora da eucaristia,

onde o corpo e o sangue do herói imolado são ingeridos como representação da união entre os dois corpos, formando um só. Oswald de Andrade colheu do estrangeiro aquilo que era mais saudável e aqui, em solo brasileiro, soube aproveitar esse maná, dando-o fractalmente à sociedade brasileira. Em suma, rezava o Manifesto que a cultura brasileira não era inferior; podíamos exportar nossa cultura sem ter vergonha do olho alheio. Não parece lógico, mas o Manifesto é o avesso do discurso lógico, configurado num receituário para curar a peste que assolava o país no campo das artes. É o que afirma Benedito Nunes (1978, p. xxvi): “e esse remédio drástico, salvador, serviria de tônico reconstituinte para a convalescença intelectual do país e de vitamina ativadora de seu desenvolvimento futuro”. Para ratificar essa informação, Augusto de Campos (1978, p. 124) nos afirma: “atitude crítica, posta em prática


    compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião) do que em assá-lo e comê-lo depois que está morto”. (MONTAIGNE, 2010, p. 150).

50

Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 46-57, 2016. ISSNe 2175-7917