da vida sob a intervenção de um Deus. O que nela havia era a crença na verdade que se sustentava pelos mitos. Por isso, prega-se a devoração dos tabus, aos quais está submetida a sociedade colonizada, que passou a querer explicar tudo, principalmente no estado agônico no qual o cristianismo vinha deixando o homem. Era preciso libertá-lo do sentimento de culpa do pecado do mundo, livrando-o da moral e da lógica do discurso religioso; em tese, prega-se o retorno à natureza. Uma natureza original, paradisíaca, abençoada por Pan. A proposta da antropofagia considera, nesse sentido, o estado natural da existência.

Ao inverter os papéis antropológicos do canibal, de bom a mau selvagem, Oswald de Andrade totemiza o tabu. Isto é, o mau selvagem, na devoração cultural, passa a ser objeto de culto, divinizado, sacralizado. O objeto proibido (canibal) é consagrado como símbolo brasileiro, que representará a discussão sobre a nacionalidade cultural brasileira, no sentido que está incutido na antropofagia, qual seja, a ideia de ancestralidade. Daí a necessidade de totemizá-lo, sobretudo, para romper com a cultura europeia que vinha deturpando a nossa, no sentido de explicar a verdadeira origem da nossa identidade nacional.

A antropofagia também é comunhão, que se reflete na conjugação do ato de comer, mastigando as partes para formar o bolo salutar que é a cultura brasileira. Ou seja, não é a antropofagia um elemento meramente desconstrutor, mas ressignifica o alimento digerido. Na metáfora moderna do liquidificador de significados se concentra essa comunhão. No liquidificador unem-se as partes díspares num todo ressonante, unicolor, o que facilita a digestão. Isso coloca Gregório de Matos na cena da produção poética imitativa que ele encenou nas ruas da Bahia barroca. Paul Valéry (apud BITARÃES NETTO, 2004, p. 28) diz que “nada mais original, nada mais intrínseco a si que se alimentar dos outros. Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiros assimilados”. Gregório de Matos é um pouco de Gôngora, Quevedo, Cervantes, Camões, Lope de Vega, porque cada um desses, sendo partes digeridas, são integrados ao corpo que o absorveu.

A vida do poeta baiano é o reflexo do ato antropofágico. Tudo nele converge para o desregramento, para a ruptura, para o impacto. Seus versos satíricos, por exemplo, demonstram a dessacralização do tabu a fim de totemizá-lo. Exemplo disso são os muitos poemas em que a persona poética destroniza o poder instituído, exaltando o marginal. A linguagem empregada para ridicularizar os atores da cena poética está em perfeita consonância com a pregação da antropofagia. É, ademais, uma desconstrução alegórica do institucionalizado; das ruínas dessa destruição constrói-se a identidade brasileira. É como nos considera Bina Maltz (1993, p. 11) “destruir para construir em cima. Deglutir para, de posse

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 46-57, 2016. ISSNe 2175-7917