díspares dessas culturas em solo ameríndio são derretidos poeticamente a fim de fornecer dados à homogeneidade aparente da nova cultura. Gregório de Matos utiliza-se desse recurso, ou seja, do vocabulário inter/intra/entre línguas liquefeito para o barroco tropical, como bem explora Segismundo Spina ([1980?], p. 71): “no Brasil apenas incorporou ao seu vocabulário lexicográfico a contribuição tupi e africana, vivificada pelo caudal gírico e chulo do tempo e por uma linguagem figurada que aqui e ali fazia despontar o barroco tropical”. Como exemplo desse caudal gírico, como num festejo alegórico, exalta a voz poética:

AOS PRINCIPAIS DA BAHIA CHAMADO OS CARAMURUS

Há cousa como ver um Paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.

A linha feminina é carimá
Moqueca, pititinga caruru
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Piraguá.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.

O Branco era um marau, que veio aqui,
Ela era uma Índia de Maré
Cobé pá, Aricobé, Cobé Paí. (MATOS, 1999, p. 640)

As escolhas lexicais que compõem a cena poética fazem parte essencialmente do alfabeto colonial tupi-guarani, que para sua compreensão necessitará o leitor de uma vivência maior com esse universo semântico ou a ajuda de um dicionário técnico. Não há um verso no soneto que não tenha, pelo menos, um termo da língua tupi e/ou africana. Esse poema parece ser uma explicação da gramática tupi, porque a segunda quadra e o primeiro terceto falam de substantivos femininos em um e masculinos em outro.

Nesse poema, portanto, revela-se o rito antropofágico na devoração alegórica dessas palavras oriundas de línguas diferentes. Surge, mais uma vez, a metáfora tão usada pelo Tropicalismo do liquidificar os significados que, nesse caso, correspondem ao universo de palavras de línguas diferentes sendo liquefeitas, resultando num todo orgânico possível pelo trabalho poético com o qual está bem familiarizado Gregório de Matos. Razão perfeita para, mais uma vez, asseverar que Gregório de Matos é a expressão antropofágica brasileira.

Conclusão

Partindo das prerrogativas teóricas dos irmãos Campos, em especial, de Augusto de Campos, quem afirmou ser Gregório de Matos nosso primeiro antropófago, é que este artigo

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 46-57, 2016. ISSNe 2175-7917