modernidade. Naturalmente, é preciso que relativizemos a questão, já que o escritor russo não se enquadraria no estereótipo de flâneur descrito por Walter Benjamin: “A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes” (BENJAMIN, 1995, p. 35). Se consideramos tal característica destacada pelo filósofo alemão, a de um sujeito que se compraz em vaguear em meio a uma cidade cujos prédios cada vez mais ocupam o espaço azul do céu, não poderemos chamar Dostoiévski de “flâneur clássico”, tendo em vista que as observações do escritor russo demonstram a lucidez de um sujeito atento ao que o circunda. O que diferencia as notas do romancista russo é seu olhar crítico, que não se contenta em apenas descrever imparcialmente aquilo que vê, como alguém que escreve para um jornal. Havia a necessidade, por parte de Dostoiévski, de relatar as sensações, as experiências pessoais de sua viagem, daí o caráter pouco organizado do texto, daí também as “escusas iniciais” com que o escritor principia a obra. E que nesta não se queira encontrar a verdade sobre o que acontecia naquele suntuoso mundo em que a Rússia gostaria de se ver transformada. Aos que estiverem dispostos a ler uma versão da história, Notas de inverno... poderá ter alguma serventia, eis o que Dostoiévski nos anuncia desde o início.

Partindo de suas desorganizadas anotações sobre as cidades pelas quais passa, Dostoiévski se permite abordar temas filosóficos e políticos, já nos capítulos finais do texto. Tais debates não deixam de ter relação direta com as metrópoles modernas da Europa, haja vista que era no “velho mundo” onde se debatiam calorosamente algumas das questões mais importantes da filosofia daquele tempo. Em alusão à Crítica da razão pura, por exemplo, escreve Dostoiévski:

[...] a razão revelou-se inconsciente ante a realidade e, além disso, os próprios homens de razão, os próprios sábios, começam a ensinar agora que a razão pura nem existe no mundo, que não existem as conclusões da razão pura, que a lógica abstrata é inaplicável à humanidade, que existe a razão de Ivan, de Piotr, de Gustave, mas que a razão pura nunca existiu; que tudo isto não passa de uma invenção do século XVIII, destituída de fundamento (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 131).

Na passagem acima, destaca-se a menção feita ao século XVIII. A propósito do pensamento filosófico de Immanuel Kant (1724-1804), observamos em Dostoiévski a consciência de que certa concepção que se tinha a respeito da razão entre os homens era algo passado e, portanto, já não poderia mais ser a do homem do século XIX, isto é, a do homem moderno que então se edificava. Essa passagem de Notas de inverno... é emblemática, uma vez que apresenta de maneira muito clara a liberdade que o homem do “novo mundo” emergente via diante de si. O “novo homem” moderno, aparentemente livre, seria capaz de

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 70-80, 2016. ISSNe 2175-7917