Mallarmé: as “subdivisões prismáticas da Ideia” e o “terceiro aspecto de fusão”

Os desafios colocados pela obra de Mallarmé são exemplares de como o hermetismo é seta que aponta para si e para fora. É sintomático disso que sua poesia seja constantemente usada como metáfora não só para a situação da poesia posterior a ele, mas mesmo como f1m a ser projetado na leitura da história da poesia anterior. Friedrich chega mesmo a afirmar que os problemas colocados em sua obra resumem “a situação primordial da poesia modema”, o que explicaria “tanta veneração” (FRIEDRICH, 1978, p. 139).

O próprio Mallarmé parece sentir o espírito da época como saturado de uma problemática primordial. Em “Crise do verso”, já o segundo segmento anuncia que a época “encontra pausa ou consciência” (MALLARMÉ, 2008, p. 150). Tal pausa parece, ao longo do truncado texto, uma situação de reflexão diante de um problema que parece simples (a não sujeição do gênero à tradição do verso), mas se mostra bem mais complexo. É fácil para Mallarmé superar a discussão da questão da versif1cação: o verso é convenção que “remunera o defeito das línguas” (MALLARMÉ, 2008, p. 155), mesmo desaparecendo parece se colocar como modelo - “a reminiscência do verso estrito é o fantasma desses jogos oblíquos” (MALLARMÉ, 2008, p. 153) - e não precisa ser levado tão a sério, já que o que contaria como critério é uma unidade da arquitetura, algo que lhe estruture enquanto obra, pois “toda alma é uma melodia, que se deve reatar, e para tanto, existem a flauta e a viola de cada um” (MALLARMÉ, 2008, p. 154).

Se o problema é simples do ponto de vista da proclamação de uma liberdade diante da tradição, rapidamente se percebe que o objetivo do texto é outro. Afinal, a pergunta que amedronta é: o que seria essa estruturação que vem substituir o verso como a saída para o problema do defeito das línguas? A apresentação feita pelo poeta no texto é uma chave de leitura bastante importante para o choque diante do poema “Um lance de dados” e, embora evidentemente não esgote suas possibilidades de interpretação, aponta para o tipo de projeto que baseia a construção desse poema, considerado por tantos como fundador de uma poética moderna - não foram poucos autores, afinal, que tiveram de se posicionar frente à tradição fundada por Mallarmé.

O que será defendido, por assim dizer, em “Crise do verso”, é que a estruturação das partes transpostas (a transposição, para Mallarmé, busca antes a sugestão que a declaração taxativa, visto que esta reduziria a realidade, enquanto aquela a iluminaria) leva a um projeto que elimina o eu poético. É no “desaparecimento elocutório do poeta” que a obra em si surge,

e das relações entre as partes, os fragmentos aludidos, emana a estrutura não-casual (ou seja,

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 92-113, 2016.1SSNe 2175-7917