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O Poeta revelou a consciência aos homens, porque neles fixou e acendeu aquela serena e firme estrela, que, no seu ponto de interferência, os raios do Amor infinito geraram em Memória.

Por essa Memória é o homem a praia onde marulham os oceanos de outras vidas, o foco onde se reunem as vibrações etéreas de todos os sóis.

A Tragédia grega, D. Quixote, os Evangelhos, a Divina Comédia, Camões...

D. Quixote é a Bíblia do Ideal!

O Ideal é a ausência duma percepção espiritual, é nessa ausência que se insinua o Mistério...

Eis porque o Ideal é presença invisível mas activa, fecunda presença de realidades superiores que, como o longínquo polo para a agulha, polarizam a vida do homem, embora este as não perceba, nem toque.

D. Quixote é a própria fome do Ideal. Fome insatisfeita no plano de vida terrestre, porque é nesse plano a presença de realidades espirituais excedentes.

Eis porque o D. Quixote é eterno; morto o planeta, êle será ainda em qualquer vida a sua distância a um plano superior.

D. Quixote vive em todos os homens, são as próprias asas do seu sonho, é a ausência e o desejo de Deus.

Sob êsse ponto de vista, todo o esforço para a consciência, que é a própria linha de evolução dos mundos, da vida e do homem, a sciência, a arte e a moral, é uma sedução quixotesca, é o influxo superior que uniu a alma de Cervantes às realidades espirituais transcendentes.

D. Quixote é o Ideal; o Evangelho é a própria visão espiritual exaltada aos planos superiores da divindade.

D. Quixote é o cego impelido para a Beleza por um pressentimento interior; Cristo é a própria Luz abrindo olhos de percepção espiritual na máscara pávida do homem.