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CARTA DE GUIA DE CASADOS

venha daqui, que ao amor chamemos amores ; pois se êle fôra um só, grande impropriedade fôra esta.

Eu considero dous amores entre a gente. O primeiro é aquele comum afecto com que, sem mais causa que sua própria violência, nos movemos a amar, não sabendo o que, nem o porque amamos. O segundo é aquele, com que prosseguimos em amar o que tratamos, e conhecemos. O primeiro acaba na posse do que se desejou; o segundo começa nela : mas de tal sorte, que nem sempre o primeiro engendra o segundo, nem sempre o segundo procede do primeiro.

Donde infiro, que o amor que se produz do trato, familiaridade, e fé dos casados, para ser seguro, e excelente, em nada depende do outro amor, que se produziu do desejo do apetite, e desordem dos que se amaram antes desconcertadamente ; a que, não sem erro, chamamos amores, que a muitos mais impeceram que aproveitaram.

Parecerá dificultoso o considerar, como à pessoa que não havemos visto poderemos amar com perfeição. Larga é a disputa, e não daqui. Digo eu que façamos, senhor N., neste caso, como os que cortam madeira, e a lançam ao rio, para que sua corrente lha leve (sem algum trabalho) ao pôrto. Êles não sabem por onde vai sua mercadoria, mas basta-lhes saber, que ela chega a salvamento, por outras que já tem chegado, para que a entreguem às águas com muita confiança.

Deixe-se levar a casado do poder daquele virtuoso costume ; não lute, não forceje com a corrente, que quando menos o espere (e sem saber o como aquilo foi) êle se achará amando a salvamento a sua mulher, e sendo dela muito seguramente amado.

Dê-se-lhe a entender a mulher, que a cousa que