Página:Cartas de amor ao cavaleiro de Chamilly.pdf/151

CARTA DE GUIA DE CASADOS
125

inconvenientes ; não se ficará sendo a fábula do povo, onde de ordinário servem de iguaria aos murmuradores as acçoes de tais casados. Procede daqui não leve injúria ; pelo menos um escrúpulo de afronta, que anda sempre zunindo nos ouvidos do pobre marido, como os grilos da própria mulher brava.

A feia é pena ordinária, porém que muitas vezes ao dia se pode aliviar, tantas quantas seu marido sair de sua presença, ou ela da do marido. Considere que mais vale viver seguro no coração, que contente nos olhos e desta segurança viva contente ; que pouco mais importa haver perdido por junto a formosura, que vê-la ir perdendo cada dia, com lástima de quem a ama. Isto sucede sempre nas mulheres, já pela idade já pelos achaques, a que tôda a formosura vive sujeita. Donde com muita razão se queixava um discreto, não de que a natureza acabasse as formosas, mas de que as envelhecesse.

Mulher néscia, cousa é pesada, mas não insofrível ; procure o marido emprestar de seu juízo ás acções de sua mulher aquela discrição que vir que lhe falta. Assim o fará o entendido, e se êle também o não fôr, pouca pena lhe dará que ela o não seja.

A doença, que a muitos aflige, é também um não pequeno trabalho : vê-se penar a pessoa a quem se quere bem ; e porventura soem ser estas as que menos o merecem ; porque males e bens muito há que costumam andar desordenados. Deve a mulher, quando enfêrma, ser tratada de seu marido com todo o regalo possivel, sofrida com tôda a paciência. Pode-se fazer esta conta : que estando disposto haja de padecer o homem em ametade de sua alma, favor foi grande de Deus padecesse antes naquela parte que menos falta faria à sua