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LITTERATURA DOS CONTOS POPULARES
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O conto não foi desprezado pela litteratura ascetica do seculo XVIII, que se apropriou de elementos de erudição; o Padre Manoel Consciencia, na Academia universal de varia erudição, traz o conto dos ladrões que foram ao Thesouro de Rampsinito, narrado por Herodoto. Encontrámol-o na tradição oral açoriana, em que um rei manda escutar pelas portas para descobrir onde se chora e assim descobrir-se a familia do morto. Ouviu-se chorar em uma casa, bateram á porta, e n'isto um dos filhos, que estava desmanchando um porco, deu com um machado n'um pé, e assim se encobriu o motivo verdadeiro por que se chorava. Na Hora de Recreyo do Padre João Baptista de Castro vem alguns contos tradicionaes, que já apparecem em collecções anteriores, como o da Quarta de leite (p. 29), a Velha que dá o que tem á filha (p. 81), o Cego e o moço comendo uvas (p. 123), o Estudante que furta a roupa do transeunte (p. 130), e o conto decameronico do Marido que confessa a mulher (p. 16). O conto do estudante que se substitue ao burro que vae á feira, e do qual se originou o adagio Quem não te conhecer que te compre, já contado pelo Bluteau, acha-se outra vez narrado na Hora de Recreyo (vol. II, p. 13).

No periodo do Romantismo, em que as Litteraturas modernas se aproximaram das suas fontes tradicionaes, tambem Garrett e Herculano sentiram a necessidade de imprimir uma feição nacional á litteratura portugueza; Herculano romantisou o conto da Dama Pé de Cabra nas suas Lendas e Narrativas, e Garrett metrificou a lenda de Gaia, do Nobiliario. Mais tarde Mendes Leal fez uma especie de magica fiabesca das Tres Cidras do Amor, com toda a inintelligencia do ultra-romantico. Era preciso fazer a transição da emoção artistica para a critica consciente; esta phase do Romantismo europeu só veiu a operar-se muito tarde em Portugal, quando a Historia litteraria recebeu um espirito philosophico, e o corpo das tradições poeticas foi explorado com intuito scientifico.