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— O dou ao demo a canalha; que, como se sentem vestidos não ha quem possa com elles.

(Trancoso, Contos, P. i, conto x. Ainda se repete na tradição popular do Porto.)



156. O REAL BEM GANHADO

Aconteceu que um domingo, estando um ermitão á porta da ermida, viu atravessar pelo campo um pobre lavrador carregado de rêdes e armadilhas, que a seu parecer ia armar aos passaros. O ermitão chegou a elle, e lhe perguntou de donde era e adonde ia; o qual respondeu:

— Sou de meia legua de donde estamos, e entendi hoje na estação que fez o cura, que o Espirito Santo deceu ao mundo em figura de pomba, e eu desejo de o vêr e achar, e tomei estas rêdes emprestadas, e venho-as armar, e se o posso aver n’ellas, lhe ei de pedir que aja misericordia comigo, dando-me mantença para cada dia, que eu e minha mulher com pão e agua da fonte nos contentamos.

O bom do ermitão, visto isto, levou á ermida e deu-lhe quasi todas as offertas que aquelle dia avia recebido, e lhe disse:

— Irmão, tomae isto, comei vós e vossa mulher; mas é necessario que me digaes qual quereis mais — um real bem ganhado, ou cento mial ganhados?

O pobre homem tomou o pão, e com alegria se foi a sua casa, dizendo ao Ermitão que averia conselho com sua mulher, qual era melhor, e tornaria a dizer-lh’o. E tornando a casa, comeram contentes, e ouveram conselho qual tomariam — um real bem ganhado ou cento mal ganhados; quizeram ambos de um accordo um real bem ganhado, antes do que cento mal ganhados, e com isto