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domo-mór da rainha. E n'este tempo que a servia, sendo vossa magestade ausente, senti que um escravo de casa sahiu do paço com certas peças ricas, que me pareceu levava de mau titulo; tomei-lh'as, e por não infamar á pessoa que as devera guardar, ou quem lh'as deu para as vender, dissimulei o caso, forrei o escravo, e mandei-o fóra do paço, dando-lhe dinheiro para o caminho; no que tudo usei do segundo conselho, que era — ser misericordioso quando fosse poderoso. Agora levando a carta que vossa alteza me mandou, achei-me a uma legua da fortaleza com o cavallo desferrado; conheceu-me aquelle escravo, que com o dinheiro que lhe dei aprendera a ferrador, e estava ali casado, e quando me viu ferrou-me o cavallo, mostrando e fazendo-me muito gazalhado me importunou que pousasse com elle aquella noite, o qual eu acceitei por guardar o terceiro conselho, que era tomar pousada com sol. O preto por me pagar, sem eu o saber me tomou a carta da cabeceira, porque lhe disse que a levava áquelle capitão, e de madrugada partiu de sua casa e a levou; d'onde resultou que conforme ao que n'ella dizia elle padeceu. Póde ser que quem tinha culpa das peças que digo, quando achou que não parecia o negro, temendo ser descuberto de mi, quiz com minha morte innocente segurar a vida maliciosa pondo-me algum falso testemunho.

ElRey ouvindo isto pasmou e fez vir ante si quem o accusava, o qual a poucas perguntas confessou ser elle culpado em delictos que cuidava o mordomo-mór sabia, e por escapar lhe alevantou tudo o que contra elle se disse a elrei. ElRey o poz em justiça e por ella foi condemnado á morte, que logo se executou. E assim pagaram elle e o negro como malfeitores, e escapou o innocente mordomo.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte I, n.º XVIII.)