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CONTOS E PHANTASIAS

genuino da sua época e do seu meio; homem prodigio, que era ao mesmo tempo o espirito mais sceptico e o mais supersticioso, o mais corrupto e o mais infantil, o mais cultivado e o mais ignorante, o mais positivo e o mais phantasista, o mais atrozmente eivado de todos os venenos corrosivos da civilisação moderna, e o mais primitivo e adoravelmente poetico que existe no mundo da Arte.

Ella conhecera-o por muitos annos, mesmo antes de ser sua mulher, amparara-o muitas vezes nas suas luctas cyclopicas contra os modernos monstros — a Divida, a Calumnia, a Inveja — e tantos outros que lhe retalhavam o coração com as garras sanguinarias; acolhera-o muitas outras, cançado, vencido, aniquillado, depois de uma d’aquellas vertiginosas viagens pelos mundos chymericos do Impossivel; vira-o partir montado no fogoso Pegaso do sonho. Imaginario terrivel, moderno e mais complicado D. Quichote, em busca de tesouros que nunca existiram, de fabulosas hypotheses em que ninguem acreditava, de ideaes entrevistos que lhe davam o deslumbramento extatico e paradisiaco; ouvira-lhe depois no seu regresso ao mundo da realidade o rir estrondoso e rabelaisiano, rir de um gigante em horas de gaudio, rir só digno d’aquella natureza robusta e fecunda em contrastes,