62
DOM PEDRO E DOM MIGUEL

qual não peccava pela credulidade, a Constituição portugueza não possnia a seus olhos grande importancia. Quando muito a acharia thema para um d'esses longos aranzeis sem succo com que elle, no dizer do conde de Sainte-Aulaire, embaixador da França em Vienna, costumava embrulhar os assumptos para esconder o seu pensamento. Que fosse Dom Miguel, que fosse o proprio Dom Pedro que, como regente, a applicasse como o desejava Saldanha pela estranha theoria de que ninguem melhor do que o Imperador para servir de fiscal á operação necessaria para preservar o reino de uma annexação estrangeira, caso portanto de administração temporaria, a Carta parecia destinada a curta vida.

Dom Miguel não mudara certamente de idéas em Vienna, e Dom Pedro já mostrara no Rio de Janeiro como se dissolve as assembléas incommodas pelo seu liberalismo. A ambição de desempenhar um papel conspicuo no Velho Mundo poderia mais tarde tental-o; o desejo de tornar-se um Bolivar peninsular poderia um dia instigal-o: isso não impediria o seu natural de volver á tona e o autocrata por temperamento despir as vestes do amigo dos povos e das liberdades. Dom Pedro estava forçado a outorgar uma carta a Portugal. Se ahi mantivesse um governo absoluto, seus subditos brazileiros não poderiam confiar na sua fidelidade á monarchia limitada, e por seu lado « o povo portuguez não soffreria ser tratado como escravo, quando aquelles a quem elle não estava costumado a olhar como seus superiores eram julgados dignos de uma constituição mais popular »[1].

Dom Miguel estaria mais livre para agir, se bem que Dom João VI houvesse restabelecido em 1824 a antiga Constituição portugueza, a qual nunca fôra aliás abrogada, abolindo virtualmente a monarchia absoluta de Dom João V e substituindo-a por um governo que admittia a antiga tradicional participação da nação[2].

Canning depressa acceitou as considerações de Dom Pedro porque é proprio do politico e mesmo do estadista não se obstinar nas suas vistas pessoaos e não vacillar em modifical-as quando n'isto se lhe depara vantagem publica ou re-

  1. Questão Portugueza, Lisboa, 1827.
  2. Nas Ordenações Philippinas se menciona, no preambulo de cada lei, que para sua auctoridade é necessario o consentimento das Côrtes. O importante poder de conceder subsidios estáva indisputavelmente nas Côrtes desde o mais remoto periodo da historia authentica até a suspensão da Constituição no seculo XVIII. O alvará real não podia revogar a lei feita em Côrtes, e o chanceller tinha o direito de recusar o registo a qualquer acto que devesse valer por mais de um anno. Ora, o registo era necessario para sua validade. As Cortes de 1385 e depois as de 1641 declararara illegaes todos os tributos impostos pelo poder despotico». (Questão Portugneza).