35.1
2019

Emília, a cidadã-modelo soviética

para o não pagamento da tradução pela Gosizdat, à qual Kamiônskaia exige a quitação por meio da Federação da União (aqui, não Soiuz, mas Obedinenii) dos Escritores Soviéticos. Assim, a obra de Monteiro Lobato já era conhecida, em alguma medida, pelos gatekeepers da intelligentsia soviética desde o final dos anos 1920. A pesquisadora russa da Universidade de Tcherepovets Elena Beliakova sustenta, porém, a recomendação de Jorge Amado teria sido crucial à publicação de Lobato (Beliakova, 2010).

6. As mudanças nas traduções de Lobato para o russo

i) Sítio — propriedade particular!

Em artigo intitulado “Emília vítima da tradução” (1982), Tatiana Belinky (1919-2013), imigrante russa no Brasil, escritora, tradutora e roteirista responsável pela adaptação da obra de Lobato para a televisão, comenta a tradução e adaptação de Reinações de Narizinho para o russo. Ela relata que o livro tem uma


capa amarela, com um rinoceronte puxado por um bonequinho de espiga de milho, de chapéu mexicano na cabeça, e montado por três personagens: uma garotinha, uma boneca magricela de ‘rabo-de-cavalo’ e um menino, de calças compridas e franjadas e grande ‘sombrero’ na cabeça. O título do livro e o nome do autor em russo estão dentro de um típico escudo-de-armas, com um pequeno pica-pau amarelinho e os letreiros: ‘Monteiru Lobatu’ e ‘A Ordem do Pica-Pau Amarelo’. (Belinky 1982:25)


Belinky pergunta-se por que o sítio é transformado em uma pe-quena casa. O começo, no original, era: “Numa casinha branca, lá no Sítio do Pica-Pau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos” (Lobato 1980:8). No russo, retraduzido para o português, torna-se: “Numa pequena casinha, que nos arredores denominaram, não se sabe por que, de casinha do Pica-Pau Amarelo” (Lobato apud Belinky 1982:25). A grande probabilidade, aventa a escritora, é de que o “sítio” tenha sido eliminado devido ao fato de ser propriedade particular, inaceitável dentro do sistema soviético. Belinky comenta que vários trechos são eliminados, e reflexões acrescentadas. As “asneiras” de Emília, excessivamente individualista, são enfatizadas, e a bondade de

11