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desgraçados, no trance tremendo do passomento, quando já não lhes restavam senão alguns momentos de vida, e a ponto de apparecerem diante de Deus, mentiam a si e ao mundo, e blasphemavam da crença que tinham no coração e que era toda a sua esperança futura, sem um unico interesse em conservar a mascara hypocrita de simulado christianismo, é uma idéa tão extravagante, que sería infallivel prova de loucura o refutá-la seriamente[1].

Depois do precedente extracto da carta de João de Mello e das reflexões que ella suggere fora inutil multiplicar os exemplos, que aliás abundam nas memorias dos christãos-novos, das violencias e atrocidades que, debaixo de apparente regularidade, se practicavam na Inquisição de Lisboa. Advertiremos só que o homem cuja indole e cujas idéas se revelam naquelle documento era o mais influente entre todos os inquisidores, e que, de-

  1. Este argumento acha-se repetido em mais de a allegação dos christãos-novos, com maior ou menor perspicuidade. Como é de suppor, os defensores da Inquisição nas suas apologias ou o metteram no escuro, ou replicaram deploravelmente: nem outra cousa era possivel.