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ainda a mais dolorida, não apresenta nunca a profundidade d’esta. É preciso ter toda a integridade da sensibilidade e da rasão para soffrer assim. No padeccimento dos loucos ha um não sei quê, sem nome talvez na symptomatologia do soffrimento, mas a que poderiamos chammar — a isolação da alma.

Ao voltar a si, a condessa parecia um pouco mais calma. Para evitar um recrudescimento de excitação proveniente de uma longa narrativa de episodios que me pareceu discreto evitar, um pouco como estudante de medicina, principalmente como homem honrado, disse-lhe:

— Sabe mais alguem d’este caso? — Sabe-o a minha creada de quarto, a que me acompanhava hontem quando nos viu, e sabel-o-ha dentro em pouco meu primo H... a quem hoje escrevi. Meu primo porém está em Cascaes. O morto é um extrangeiro. Ninguem, a não ser meu primo, o conhece em Lisboa. Ignorava-se mesmo que elle existisse aqui. Entregal-o aos tramites policiaes, ter de revelar o seu nome, descobrir a sua naturalidade, a sua familia, eis o que principalmente eu queria evitar. Conseguido isto, entrego-me aos tribunaes, mato-me, fujo, enterro-me viva... como quiserem!

— E sabe seu primo como elle morreu?

— Não. Vai saber apenas que está morto...

— Póde contar com o silencio da sua creada, por alguns dias ao menos?

— Posso. Por toda a vida.

— Evite, se póde, que seu primo receba hoje a sua carta. E... elle, onde está?

— Na mesma rua em que nos encontrámos hontem, no predio n.^o...

— Para entrar na casa...

— Ha uma chave — respondeu ella.

E tendo meditado um momento:

— Hontem — prosseguiu — quando lhe disse que viesse hoje a minha casa, estava louca de desesperação e de horror. Parecia-me que tudo quanto se approximava de mim me trazia a punição, o castigo, e que tudo quanto se affastava fugia para longe com o meu ultimo amparo, com o derradeiro soccorro que eu ainda poderia ter n’este mundo!... Foi n’este delirio que lhe pedi a V..., um extranho, um desconhecido, que viesse vêr-me... Para quê?.. nem eu sabia para quê... Para contar isto a alguem, para me decidir, para ter uma solução, para apressar um desenlace qualquer, para fugir de mim mesma... Ir á policia era entregar esse infeliz á mais horrorosa das profanações.