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tomemos um exemplo, — a aventura trivial, a commum, o que se poderia chammar a aventura typo, o que se vê todos os dias, em qualquer rua, no primeiro numero par ou impar... a aventura que nós acotovellamos no passeio, que toma comnosco neve na confeitaria Italiana, e que se enterra ao pé de nós no Alto de S. João.

A scena é simples, de tres personagens. Eu, por exemplo, sou a mulher. Meu marido é um homem honesto e trabalhador. Cança-se, lucta, prodigaliza-se: logo de manhã sae para o seu escriptorio, ou para o seu jornal, ou para o seu officio, ou para o seu ministerio; cercea o seu somno, almoça á pressa, quebra o seu descanço. Todo elle é attenção, vigilia, trabalho, sacrificio. Para quê?

Para que os nossos filhos tenham uns bibes brancos, e uma ama aceada; para que as minhas cadeiras sejam de estofo e não de páu; para que os meus vestidos sejam de seda e talhados na Marie, e não de chita e cosidos pelas minhas mãos, de noite, a um candieiro amortecido.

Meu marido é um homem honesto, sympathico, serio, affavel. Não usa pós de arroz, nem brilhantine, não tem gravatas de apparato, não tem a extrema elegancia de ser moço de forcado, não escreve folhetins; trabalha, trabalha, trabalha! Ganha com o seu cançasso, com os seus tedios, em horas pesadas e longas, o jantar de todos os dias, o vestuario de todas as estações. A sua consolação sou eu, o centro da sua vida sou eu, o seu ideal e o seu absoluto sou eu! Não faz poemas romanticos, porque eu sou o seu poema intimo, a musa dos seus sacrificios; não tem aventuras porque eu sou a sua esposa; não tem viagens gloriosas pelos desertos nem o prestigio das distancias, porque o seu mundo não é maior do que o espaço que enche o som da minha voz; não ganhou a batalha de Sadowa mas ganha todos os dias a terrivel e obscura batalha do pão dos seus filhos...

É justo, é bom, é dedicado. Dorme profundamente porque o seu cançasso é legitimo e puro; gosta da sua robe de chambre porque trabalhou todo o dia. Julga-se dispensado de trazer uma flôr na boutonniére porque traz sempre no coração a presença da minha imagem.

Pois bem! que faço eu?

Aborreço-me.

Logo que elle sae, bocejo, abro um romance, ralho com as criadas, penteio os filhos, torno a bocejar, abro a janella, olho.

Passa um rapaz, airoso ou forte, louro ou trigueiro, imbecil ou mediocre. Olhamo-nos. Traz um cravo ao peito,