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que edificava a sua vida sobre o coração d’elle, que se preparava para ser no lar, e para sempre, a presença da graça e a consciencia viva? Não: isto não podia ser.

Mas por outro lado, era justo que eu, tendo sacrificado por elle tudo, desde o pudor intimo até á honra social, fosse agora arremessada como uma luva velha?

Eu que tinha sido tudo quando se tratava da sua imaginação, não seria nada agora porque se tratava do seu interesse? Não me exilara eu por elle, do paraizo domestico? Por elle não renunciara as alegrias pacificas da vida, e a sublime esperança d’uma morte digna? Como eu tinha sacrificado por elle a honra d’um homem, não podia elle sacrificar por mim as esperanças romanescas d’uma creança? Era justo ter-me trazido enganada, envolvida, como n’um arminho, nas apparencias do amor, ter-me conduzido com os olhos vendados, attrahida, suspensa do rythmo dos seus passos, a um logar perigoso, a uma situação intoleravel, e chegando ahi dizer-me: «Adeus agora! eu vou para a felicidade. Tu fica; mas cuidado, que para traz não pódes voltar; e se deres um passo para diante, vaes abysmar-te na infamia!».

Não, isto não deve ser: o amor não é uma creação litteraria, é um facto da natureza: como tal produz direitos, origina deveres. E os direitos do amor não os abdico.

Pois quê! Por causa da outra! Hei de dar tamanha consideração ás lagrimas que choram dois olhos alheios, que nunca vi, que estão a duzentas leguas de distancia e não hei de apiedar-me das minhas lagrimas, que escorrem aqui na minha face, e que eu aparo na tremura das minhas mãos!

«És casada» dizem-me. O que! Porque perdi mais, devo ser attendida menos! Eu, que vivo quasi fóra do mundo, sem estar ligada a nenhuma d’estas cousas superiores que amparam a vida, suspensa sobre a morte por um leve fio, por este amor unico, é por isso que devo ir com as minhas mãos quebrar esse fio, quebrar esse amor!

Ha algum direito humano que exija isto de mim? Ha alguma piedade que o veja friamente? Ha alguma consciencia que o justifique? Se ha, essa consciencia poderia ensinar a serem duros os rochedos do mar!

Mas, meu primo, tudo isto é aqui, n’este papel em que lhe escrevo. Porque na realidade eu não podia luctar com ella! Ella era a miss, a que havia de ser esposa e mãe, — vencia tudo! Elevava-se sobre as velhas affeições, sobre os velhos erros, como a imagem da virgem sobre o globo feito de barro e de lama, onde se enrosca a serpente.