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meu pequerrucho, tral-o-hia vestido de côres leves, com uma flôr no cinto; conversaria com elle, e á volta, depois do cansaço do meu passeio, amaria a tranquillidade da minha vida. Elle adormeceria sobre o sofá. A janella estaria aberta. Grandes borboletas brancas voariam em volta do candeeiro; eu, ajoelhada, procuraria despil-o, sem o acordar, cantando, baixo, em segredo, uma melodia dormente de Mozart, e no entretanto a penna do pae rangeria, a um canto, sobre o papel. Ó perfumados paraizos da vida! como eu me affasto de vós!

Assim pensava, quando cheguei a casa. No meio do meu quarto estavam fechadas, affiveladas, sobrepostas as minhas malas. Ao pé uma grande pelle, apertada na sua correia. Tudo estava prompto, deviamos partir na manhã seguinte. As minhas idéas simples debandaram.

Senti um extremo desejo de liberdade, de mares abertos, de paizes extensos e distantes, que se atravessam ao galope da posta ou na velocidade d’um wagon. Era noite. Não pedi luz. O luar entrava no quarto atravez das arvores do jardim. Sentei-me á janella.

A minha situação appareceu-me então com o prestigio de um bello romance. Mil imaginações e phantasias cantavam no meu cerebro. Sentia-me á entrada de uma vida de perigos, de extasis, de glorias. Via-me na tolda de um paquete entre os perigos de um naufragio: ou n’uma serra espessa, por um grande luar, n’uma companhia de contrabandistas que cantam á Virgem; ou no silencio de uma caravana escoltada de beduinos, acampando no monte das Oliveiras, defronte de Jerusalem. Percorreria a Italia; entraria nas cidades ao galope dos cavallos, ao accender o gaz, quando a multidão enche os corsos entre fileiras de altivos palacios da Renascença. Via-me em Napoles, na bahia, por um luar calmo: dormindo sob as vinhas em Ischia; ou na frescura das grutas do Pausilippo, onde ainda choram as nayades... A porta abriu-se de repente, um criado entrou com uma carta. Não vi a letra do enveloppe, não olhei sequer, mas sentia-a! Veiu luz. Era verdade, era de Rytmel! Tive-a longo tempo na mão, incerta, trémula. Pul-a em cima da pedra d’uma console, fui olhar-me ao espelho, vi-me pallida. No emtanto a carta attrahia-me, parecia-me que luzia sobre o marmore branco. Tomei-a, pesei-a, senti-lhe o aroma, e de vagar, cançada, suspirando, com os braços vergados ao peso d’ella, fui-a lentamente abrindo.