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Havia uma voz pausada e grave que dizia:

— Attenta no que fazes, temerario! abre teus olhos, inconsiderado mortal! Essa perdiz, cujo peito insidioso e perfido está lourejando a teus olhos, foi apimentada com arsenico. Aquelle Chambertin, que te espera como uma onda da lagoa Stigia, embuscada por detraz d’aquelle lettreiro envernizado, apparentemente simples, elegante, convidativo, mas em verdade tenebroso e fatal como o distico do festim de Balthazar, aquelle vinho, que te offerece um beijo refalsado e fementido, está destemperado com acido prussico. As truffas, lubricas, venaes, devassas, envoltas n’esses figados de pato, estão empapadas nos temperos lethaes da cosinha dos Borgias!

A outra voz, insinuante e meiga, dizia n’uma vaga melodia de sereia:

— Come, se tens fome, estupido! Estás com medo do papão, maluco?... Põe os olhos n’esse lacre: não será um penhor seguro da pureza do liquido que elle tapa a marca d’esse abonado sinete? Não vês hermeticamente fechada, chumbada e garantida com os mais especiaes lavores a lata d’essas sardinhas pescadas nas costas de França e cosinhadas ha seis mezes em Marselha? Não vês religiosamente grudada e sellada com as etiquetas insuspeitas e sagradas da acreditada casa Chevet essa terrina de foie gras? Suppões acaso, ó parlapatão, que meio mundo se conjurasse para te arrancar essa vida inutil? Come, bebe e dorme; aproveita nos braços da sabedoria as horas gostosas da solidão com que te brinda o acaso. Deleita-te conversando depois comtigo e repousando-te no seio tepido da melancolia, d’essa deliciosa fada que só apparece evocada pelos namorados e pelos solitarios, e que é na terra a irmã mais nova da tristeza, a irmã gatée, a irmã feliz!

Eu no entanto havia cortado a caixa de sardinhas, desgrudado a tampa da terrina e desarrolhado uma garrafa de vinho e uma garrafa de soda que misturára n’um copo.

Puz-me por fim a comer com apetite, com valor, com delicia, com uma especie de bestialidade voluptuosa, sentindo vagamente adejarem em volta de mim os espiritos beneficos do carcere que bafejaram as prisões de Silvio Pellico.

É singular isto: achava-me bem!

Depois da ceia accendi um charuto e comecei a passear no quarto, dizendo comigo:

— Visitemos o paiz!

Na parede que ficava ao lado da porta por onde se entrava havia uma outra porta. Examinei-a. Estava apenas