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anonymo: não tenho por isso duvida em apresentar esta accusação formal. Se o seu nome fosse conhecido, se as suas cartas estivessem assignadas, eu, só com provas judiciarias, me atreveria a escrever esta grave affirmativa.

Sim, o doutor *** é o cumplice d’um crime: o meu pobre amigo M. C. é um desgraçado incauto, sobre quem se querem fazer recahir as suspeitas que se possam ter já, e as provas que mais tarde venham a juntar-se. Este crime, que existe, apparece-nos envolvido nas roupas litterarias d’um mysterio de theatro. As cartas do doutor *** são um romance pueril. Vejamos.

É possivel que n’uma cidade pequena como Lisboa, em que todos são visinhos, amigos de tu, e parentes, o doutor *** que parece ser um homem notado na sociedade, vivendo n’ella, frequentando as suas salas e os seus theatros, não conhecesse nenhum d’estes quatro mascarados, que pelas suas indicações pertencem a essa mesma sociedade, se sentam nos mesmos sofás, escutam a mesma musica nos mesmos salões e nos mesmos theatros?

Uma mascara de velludo preto não basta para disfarçar um conhecido. O seu cabello, o seu andar, a sua estatura, a sua figura, a sua voz, as suas mãos, a sua toillete, são bastantes para revelar, trahir o individuo. O doutor *** pois nunca os tinha visto? O quê? Pois eram tão galantes, tão distinctos, governam tão bem as suas parelhas, fallam tão bem as suas linguas, pareciam tão ricos, e o doutor *** um medico, um homem relacionado, um velho dilletante de S. Carlos, nunca os viu, nunca os percebeu, n’esta terra, em que toda a vida se concentra nos doze palmos de lama do Chiado! E F... tem um amigo intimo entre os mascarados, diante de si, na carruagem, joelho com joelho, e não o reconhece, pelas mãos, pelos olhos, pelo corpo, pelo silencio até! Comedia!

E o menos conhecido, o menos celebre dos rapazes de Lisboa, mascara-se no carnaval de Turco, enche-se de barbas, cobre-se de plumas, veste-se de Mephistopheles, de Ci-devant, ou de Melão, e não ha ninguem que no salão de S. Carlos, não diga ao passar por elle: lá vae fulano! E é de noite, ás luzes, e as mulheres olham-nos, e estamos distrahidos, e não estamos n’uma estrada, de dia, surprehendidos e violentados! Tanto nos conhecemos todos! Comedia! Comedia!

E aquelles mascarados, são tão innocentes, tão ingenuos, que vão procurar, n’um momento tão perigoso, o homem que pelas suas relações, pela sua posição, pela sua intelligente penetração, mais facilmente os poderia reconhecer.