Página:O livro de Esopo fabulario português medieval.pdf/86

porque filho estará aqui em sentido geral). E de facto na fab. LVIII, que concorda com esta, a cordeiro corresponde cabrita. Por isso, na mente do autor, cordeiro parece se nome epiceno; e dar-se-ha aqui a especie de concordancia que os grammaticos chamam syllepse de genero[1].

couce, calcanhar: XXIX, 14. O cavallo diz ao asno: «nom quero em ty luxar os meus couçes», i. é. «patas traseiras». Do lat. calce-, «calcanhar»[2]. Ainda hoje dizemos metaphoricamente «no couce da procissão», por «na retaguarda».

cousa, nada: IV, 6, na phrase «que lhe nom prestára cousa». Cfr. Leal Conselheiro, cap. X, p. 62-63: «sem o Padre, cousa nom poderia fazer». Os exemplos d’este uso em port. arc. são numerosos. Cfr., quanto á evolução do sentido, o fr. rien < lat. rem «cousa».

cras, amanhã: XX, 12.

creer, crer: IX, 18; XV, 15.

cruevees, crueis: XIII, 16 (crueuees). O singular é cruevel ou cruevil, por isso que no ms. alternam entre si adjectivos em -vel e -vil (e -bile): vid. nota 4 á fab. LVI; o sing, de cruevees não se encontra por extenso. A fórma crueuees alterna com cruees em XXXI, cruevel e o pl. crueviis[3]. Deve admittir-se que no lat. vulg. da Lusitania houve o adjectivo *crudébilis, correspondente a crudelis, por analogia com outros, como flebilis, delebilis[4].

  1. Convem a este proposito observar o seguinte: Em algumas terras da Beira-Baixa (Fozcôa) e do Baixo-Minho (Braga, Guimarães) não se usa a palavra cordeira, e sómente cordeiro (ou cordeirinho), que tanto se applica ao macho, como á femea: os cordeiros; todavia no Minho o mais vulgar é anho, anha (anhinho, -a); e em Fozcôa ha borrêgo e borrêga, com quanto estes nomes se dêem a animaes um pouco mais velhos que o cordeiro. — Em hesp. ha cordero, -a; em mirandês cordeiro, -a. Quanto ao gallego, os diccionarios só citam cordeiro (Javier, Piñol, Valladares); não encontro nelles cordeira.
  2. Cfr. o seguinte exemplo em Phedro, Fabul., I, XXI, 8-9:
    … Asinus, ut vidit ferum
    Impune laedi, calcibus frontem extudit.
  3. Vid. Ined. de Alcobaça, II, 268 e 109, fórmas já colligidas por Cortesão, Subsidios para um Dicc. da Ling. Port., s. v.
  4. A formação é comtudo irregular, porque os adj. em -bilis são formados de verbos, e o e de flebilis e delebilis pertence ao thema: fle-bilis, dele-bili-s (thema ampliado); ao passo que crudelis é formado do adjectivo crudus, com o suffixo -eli-s. Neste caso o povo regulou-se apenas pela terminação, e substituiu élis por ébilis.