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Á MESMA DAMA.

Vejo-a n’alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que não vejo.

Glosa.


Se só de ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tão excellente
Mal poderei ser ausente,
Em quanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada,
E a memoria tanto voa,
Que se a não vejo em pessoa,
Vejo-a n’alma pintada.

O desejo, que s’estende
Ao que menos se concede,
Sôbre vós pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, qu’em ausencia vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tão pobre estar,
Qu’então não tenho que dar,
Quando me pede o desejo.

Como áquelle que cegou,
He cousa vista e notoria,
Que a natureza ordenou
Que se lhe dobre em memoria
O qu’em vista lhe faltou:
Assi a mi, que não vejo