Do que se passou ja, pois tudo passa,
Senão d’entristecer-se e magoar-se?
S’em outro corpo hum’alma se traspassa,
Não como quiz Pythagoras na morte,
Mas como quer Amor na vida escassa;
E s’este Amor no mundo está de sorte,
Que na virtude só d’hum lindo objecto
Tẽe hum corpo, sem alma, vivo e forte;
Onde este objecto falta, qu’he defecto
Tamanho para a vida, que ja nella
M’está chamando á pena a dura Alecto;
Porque me não criára a minha Estrella
Selvatico no mundo, e habitante
Na dura Scythia, e no mais duro della?
Ou no Caucaso horrendo, fraco infante
Criado ao peito d’huma tigre Hircana,
Homem fôra formado de diamante;
Porque a cerviz ferina e inhumana
Não submettêra ao jugo e dura lei
Daquelle que dá vida quando engana.
Ou em pago das ágoas qu’estilei,
As que passei do mar, forão do Lete,
Para que m’esquecêra o que passei.
Porque o bem que a esperança vãa promette,
Ou a morte o estorva, ou a mudança,
Que he mal que hum’alma em lagrimas derrete.
Ja, Senhor, cahirá como a lembrança,
No mal, do bem passado he triste e dura,
Pois nasce aonde morre a esperança.
E se quizer saber como se apura
Em almas saudosas, não s’enfade
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