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E injusto e desigual, se lho repartes?

Porqu’enganas as almas que tão cegas
Arrastas apos ti, de error captivas?
Porque a crueis rigores as entregas?

Para que contra hum peito assi t’esquivas,
Que humilde se sujeita a teu cuidado,
Com enganos de sombras fugitivas?

Levas, como a menino, hum pobre a nado,
N’huma apparencia falsa embevecido,
Quando co’os braços corta o mar inchado.

Querendo-se tornar, vê-se perdido;
Ja grita que se affoga; e tu zombando,
Da praia entre os penedos escondido!

O triste, que conhece ir-se affogando,
No meio da arriscada zombaria
Por divino soccorro está clamando.

Mas eu de que m’espanto, se dizia
Hum sabio que d’enganos se temesse
O que tomasse a hum cego tal por guia?

Nunca nelle a firmeza permanece;
Se nos dá gôsto algum, muda-se logo;
Ja chora, ja se ri, ja s’enfurece.

Anda co’os corações sempre em hum jôgo;
Humas vezes os faz de pedra fria,
Outras os faz de neve, outras de fogo.

Tornando ao bosque meu que descrevia,
Despois de ter contado da frescura
Que nelle tão pomposa apparecia,

Referir quero agora huma aventura
Que nelle ao vão Narciso aconteceo,
Digna de se chorar com mágoa pura.