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SCENA III.



O MONTEIRO .


Como he gracioso este mundo, e como he galante! E quão gracioso sería quem
o pudesse ver de palanque com carta d’alforria ao pescoço, porque não
podessem entender nelle Meirinhos, Almotacés da limpeza, trabalhos,
esperanças, temores, com toda a outra cabedella de enfadamentos! Ora notae bem
de quantas côres teceo a Fortuna esta manta d’Alentejo: perdeo-se Venadoro na
caça, eis a casa toda envolta como rio: o pae enfadado, a irmãa triste, a
gente desgostosa; tudo, emfim, fóra do couce; e o galante aposentado nos matos
com trajos mudados como camaleão, decepado dos pés e das mãos, por huma
serranica d’Alentejo; e veio acaso a sahir de maneira fóra da madre, que a
recebeo por mulher; e rapa oleo e chrisma de quem he, e renega todas as
lembranças de seu pae; pois tanto tomou ao pé da letra o que Deos disse:
Por esta deixarás teu pae e mãe. E attentae isto por me fazer
mercê: cuidareis que este caso era solus peregrinus: sabei que os
não dá a fortuna senão aos pares, como quédas. Dionysa mais mimosa e mais
guardada de seu pae que bicho de seda, moça sem fel como pombinha, que nos
annos não tinha feito inda o enequim; mais formosa que huma manhãa do S.
João, mais mansa que o Rio Tejo, mais branda que hum Soneto de Garcilasso,
mais delicada que hum pucarinho de Natal; emfim, que por meia hora de sua
conversação se poderá soffrer huma pipa com cobra e gallo e doninha, como a
parricida,