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  Ouvindo Agrario, attonito, affroxando
Da phantasia hum pouco seu cuidado,
Suspenso esteve os numeros notando.
  Mas Alicuto, vendo-se estorvado
Por hum pastor da musica divina,
O rosto levantou bem socegado,
  E disse assi: Vaqueiro da campina,
Que vens buscar ás arenosas praias,
Onde a bella Amphitrite só domina?
  Que razão ha, pastor, para que saias
A este nosso escamoso e vil terreno
Dos teus floridos myrtos e altas faias?
  Pois s'agora o mar vês brando e sereno,
E estender-se estas ondas por a areia,
Amansadas das mágoas, com que peno,
  Logo verás o como desenfreia
Eolo o vento por o mar undoso,
De sorte que Neptuno se receia.
  Responde Agrario: Oh musico e amoroso
Pescador! eu não venho a ver o lago
Bravo e quieto, ou vento brando e iroso;
  Mas o meu pensamento, com que apago
As flammas ao desejo, me trazia
Sem ouvir e sem ver, suspenso e vago:
  Até que a tua angelica harmonia
M'acordou, vendo o som, com que aqui cantas
A tua perigosa Lemnoria.
  Mas se de ver-me cá no mar t'espantas,
Eu m'espanto tambem do estylo novo
Com que as ondas horrisonas quebrantas.
  Porém se com verdade o louvo e approvo,{217}