Página:Origem das espécies (Lello & Irmão).pdf/270

244
ORIGEM DAS ESPÉCIES

pelo hábito como pela selecção e acumulação que fez o homem durante gerações sucessivas, de diversas disposições especiais e mentais que apareceram, contudo, sob a influência de causas que, na nossa ignorância, chamamos acidentais. Em alguns casos, simplesmente bastam hábitos forçados para provocar modificações mentais tornadas hereditárias; noutros, estes hábitos não entraram para nada no resultado, devido aos efeitos da selecção, tanto metódica como inconsciente; mas é provável que, na maior parte dos casos, as duas causas tenham actuado simultâneamente.

INSTINTOS ESPECIAIS

É estudando alguns casos particulares que chegaremos a compreender como, no estado de natureza, a selecção pôde modificar os instintos. Não apresentarei aqui mais que três: o instinto que possui o cuco de pôr os ovos no ninho das outras aves, o instinto que certas formigas possuem em procurar escravas, e a faculdade que a abelha tem de construir as suas celas. Todos os naturalistas concordam com razão em considerar estes dois últimos instintos como os mais maravilhosos que se conhecem.

Instinto do cuco. — Alguns naturalistas supõem que a causa imediata do instinto do cuco é que a fêmea não põe os ovos senão com intervalos de dois ou três dias; de modo que, se tivesse de construir o ninho e chocar por si os ovos, destes os primeiros ficariam algum tempo abandonados, ou então haveria no ninho ovos e aves de diferentes idades. Neste caso, a duração da postura e da incubação seria muito longa, e a ave, emigrando cedo, teria o macho provavelmente de prover às necessidades dos primeiros filhos nascidos. Mas o cuco americano encontra-se nestas condições, porque esta ave faz o ninho, e aí se observam ao mesmo tempo avezinhas e ovos que não estão nascidos. Tem-se ora afirmado ora negado o facto de o cuco americano pôr ocasionalmente os ovos nos ninhos de outras aves; mas eu sei pelo Dr. Merrell, de Iowa, que encontrou uma vez no Illinois, no ninho de um gaio (Garrulus cristatus), um pequeno cuco e um pequeno gaio; ambos tinham já bastantes penas para que se pudesse reconhecê-los fàcilmente e sem receio de enganos. Poderia citar também numerosos casos de aves de espécies muito diversas que põem algumas vezes os ovos nos ninhos de outras aves. Ora, suponhamos que o predecessor do cuco da Europa tinha tido os hábitos da espécie americana, e que tinha por vezes posto um ovo num ninho estranho. Se este hábito pudesse, quer permitindo-lhe emigrar mais cedo, quer por