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OS MAIAS

a sua vermina... Mas só Lisboa, só a horrivel Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.

E, no meio d’esta alta cólera de moralista, uma dôr perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sordido n’este canto do mundo — mas, em summa, havia no artigo da Corneta uma calumnia? Não. Era o passado de Maria, que ella arrancára de si como um vestido rôto e sujo, que elle mesmo enterrára muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seu nome — e que alguem desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ella suspenso. Debalde elle perdoára, debalde elle esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.

Ergueu-se, abalado. E então alli, sob essas arvores desfolhadas, onde durante o verão, quando ellas se enchiam de sombra e de murmurio, elle passeára com Maria, esposa eleita da sua vida — Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que d’elle descendessem lhe permittiam em verdade casar com ella...