Fernão Mendez Pinto. 34

camos todos tão cõfuſos & paſmados q̃ quaſi ficamos como fora de nos, & mãdãdo muyto depreſſa lãçar os remeyros da lanchara ao mar, os metemos todos dẽtro, q̃ erão vinte & tres peſſoas, quatorze Portugueſes, & noue eſcrauos, os quais todos vinhaõ taõ disformes nas figuras dos roſtos q̃ metião medo, & tão fracos q̃ nem a falla podião bem lançar pela boca. E deſpois de ſerem recolhidos & agaſalhados o milhor q̃ então foy poſſiuel, lhe perguntamos pela cauſa da ſua deſauentura: a q̃ hum delles reſpondeo com aſſaz de lagrimas, Senhores, a mim me chamão Fernão Gil Porcalho, & eſte olho q̃ me vedes menos, me quebraraõ os Achẽs na tranqueyra de Malaca, quãdo da ſegunda vez vieraõ ſobre dom Eſteuão da Gama, o qual deſejando de me fazer merce, por me ver tão pobre como era naquelle tẽpo, me deu licença q̃ foſſe a Maluco, onde prouuera a Deos q̃ não fora, ja q̃ tal ſucceſſo auia de ter a minha yda, porq̃ deſpois q̃ party do porto de Talãgame, q̃ he o ſurgidouro da noſſa fortaleza Ternate, auendo ja vinte & tres dias que nauegamos com tempos bonãças, & bem cõtentes de nòs, em hum junco que trazia mil bares de crauo, que valiaõ mais de cem mil cruzados, quiz a minha triſte vẽtura por muytos peccados que contra Deos comety, que fendo Noroeſte ſueſte com a ponta de Surobaya, na ilha da Iaoa, nos deu hum tempo de Norte tão rijo, q̃ com a vaga dos mares cruzados, & co grande eſcarceo q̃ o mar leuãtou, nos abrio o junco pela roda de proa; pelo qual nos foy forçado alijar o conuès, & corrẽdo aſsi aquella noite a aruore ſeca, ſem moſtrar ao vento hum ſó palmo de vella, por ſerem inſofriueis as refegas q̃ a miude o tempo de ſy lançaua, viemos com aſſaz de trabalho atê meyo quarto da lua rendido, em que ſupitamente ſe nos foy o junco ao fundo, ſem delle ſe ſaluarem mais q̃ eſtas vinte & tres peſſoas que nos aquy vedes, de cento & quarẽta & ſete que nelle vinhamos. E ha ja quatorze dias q̃ andamos ſobre eſtes paos, ſem em todos elles comermos mais q̃ hũ cafre meu q̃ nos falleceo, cõ q̃ todos nos ſuſtẽtamos oito dias, & inda eſta noite nos ſalleceraõ dous Portugueſes que não quiſemos comer, tẽdo diſſo bem de neceſsidade, porq̃ ſem duuida nos parceco q̃ oje ate a menham acabaſſemos cõ a vida eſtes miſeraueis trabalhos em que nos viamos.

CAP. XXXIIII.

Como cheguey ao reyno de Pão com estes perdidos, & do mais que aly paſſey.


ASſaz ſuſpẽſos & paſmados ficamos todos co q̃ ouuimos a eſte homẽ, vendo o triſte &miſerauel eſſa do a que chegarão elle & ſeus cõpanheyros, & naõ deixou tãbẽ de nos eſpãtar muyto ver o meyo por onde noſſo Señor por ſua miſericordia os quiz ſaluar tão milagroſamẽte, & lhe demos to-

E 2 dos