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REVISTA UNIVERSAL LIBONENSE.


O poeta portuguez d’hoje é a avezinha que, enlevada nos seus gorgeios, se balança depois do pôr do sol no ramo do ulmeiro pendente sobre o rio. As outras voaram para os seus ninhos, e ella deixou vir a noite, e ficou alli, triste, só, desconsolada, soltando a espaços um doloroso pio.

Poeta, n’esta terra é noite! Por que não te acolheste ao teu ninho? Agora o que te resta é morrer. Vae abrigar-te entre os orbes; vae derramar em canções a tua alma no seio immenso de Deos. Ahi é que sempre é dia.

Nós somos hoje o hilota embriagado, que se punha defronte da meza nas philitias de Sparta, para servir de licção de sobriedade aos mancebos. O Brazil é a moderna Sparta, de que Portugal e a moderna Helos.

Estas amarguradas cogitações surgiram-me na alma, com a leitura de um livro impresso o anno passado no Rio de Janeiro, e intitulado: Primeiros Cantos: Poesias por J. Gonçalves Dias. N’aquelle paiz de esperanças, cheio de viço e de vida, ha um ruido de lavor intimo, que soa tristemente cá, n’esta terra onde tudo acaba. A mocidade, despregando o estandarte da civilisação, prepara-se para os seus graves destinos pela cultura das lettras; arroteia os campos da intelligencia; aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca; concentra n’um foco todos os raios vivificantes do formoso ceu, que a allumia;' prova forças emfim para algum dia renovar pelas ideias a sociedade, quando passar a geração dos homens praticos e positivos, raça que lá deve predominar ainda; por que a sociedade brazileira, vergontea separada ha tão pouco da carcomida arvore portugueza, ainda necessariamente conserva uma parte do velho cepo. Possa o renovo d’essa vergontea, transplantada da Europa para entro os tropicos, prosperar e viver uma bem longa vida, e não decahir tão cedo como nós decahimos!

E’ geralmente sabido que o jovem imperador do Brazil dedica todos os momentos que póde salvar das occupações materiaes de chefe do Estado ao culto das lettras. Mancebo, prende-se á mocidade, aos homens do futuro, por laços que de certo as revoluções não hão de quebrar; porque o progresso social não virá accomettel-o inopinadamente nas suas crenças e hábitos. Quando a ideia se encarnar na realidade, o seu espirito como as outras intelligencias que o rodeiam, ter-se-ha alimentado delia, e saudará como os seus mais alumiados súbditos o pensamento progressivo. Não notaes n’éstas tendencias do moço príncipe um symbolo do presente, e uma prophecia consoladora acerca do porvir do Brazil?

A imprensa na antiga America portugueza, balbuciante ha dois dias, já ultrapassa a imprensa da terra que foi metrópole. As publicações periódicas, primeira expressão de uma cultura intellectual que se desenvolve, começam a associar-se as composições de mais alento — os livros. Ajuncte-se a este facto outro, o ser o Brazil o mercado principal do pouco que entre nós se imprime, e será facil conjecturar que no dominio das lettras, como em importância e prosperidade, as nossas emancipadas colonias nos vão levando rapiadmente de vencida.

Por si sós esses factos provariam antes a nossa decadência, que o progresso litterario do Brazil. E’ um mancebo vigoroso que derriba um velho cachetico, demente e paralitico. O que completa, porem, a

prova é o exame não comparativo, mas absoluto, de algumas das modernas publicações brazileiras.

Os Primeiros Cantos são um bello livro; são inspirações de um grande poeta. A terra de Sancta Cruz que já conta outros no seu seio, pode abençoar mais um illustre filho.

O auctor, não o conhecemos; mas deve ser muito joven. Tem os defeitos do escriptor ainda pouco amestrado pela experiencia: imperfeições de lingua, de metrificação, de estylo. Que importa? O tempo apagará essas maculas, e ficarão as nobres inspirações estampadas nas paginas deste formoso livro.

Quizeramos que as Poesias Americanas que são como o portico do edifício occupassem nelle maior espaço. Nos poetas transatlanticos ha por via de regra demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que cresceram à sombra das suas selvas primitivas.

Como argumento disso, como exemplo da verdadeira poesia nacional do Brazil citarei aqui dous trechos das Poesias Americanas: o Canto do Guerreiro e um fragmento do Morro do Alecrim.

O CANTO DO GUERREIRO.
I.

Aqui na floresta,
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não gerão escravos,
Que estimão a vida
Sem guerra e lidar
— Ouvi-me, Guerreiros,
— Ouvi meu cantar.

II.

Valente na guerra
Quem ha como eu sou?
¿Quem vibra o tacápe[1]
Com mais valentia,
Quem golpes daria
Fataes — como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me:
— Quem ha como eu sou?

III.

Quem guia nos ares
A frexa implumada,
Ferindo uma preza
Com tanta certeza
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
— Guerreiros ouvi-me,
— Ouvi meu cantar.

IV.

Quem tantos imigos
Em guerras preou?
¿Quem canta seus feitos
Com mais energia,
Quem golpes daria
Fataes — como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me:
— Quem ha como eu sou?

  1. Tacápe — arma offensiva, especie de maça contundente usada na guerra e nos sacrifícios.