Pensar é preciso/II/Buda: a religião na Índia, na China e no Japão

As conquistas persas (Dario, séc. VI) e macedônicas (Alexandre, o Grande, séc.IV) revelaram ao mundo ocidental a avançada civilização da antiga Índia, que remonta ao terceiro milênio antes de Cristo. A parte setentrional sofreu as influências da invasão de povos arianos, entre 2000 e 1500, que para lá levaram seus cultos religiosos e seus costumes. A mescla da religião dos invasores com os cultos locais deu origem ao Hinduísmo. Os Vedas, escritos em sânscrito (a língua indiana), são considerados sagrados, pois supostamente revelados pela divindade, compilados entre 1500 e 600 a.C. Os Vedas contêm, além de lendas sobre divindades e preceitos morais, hinos, encantamentos e rituais da Índia antiga. Juntamente com o Livro dos Mortos, do Egito, o I Ching (Livro das Mutações), da China, e o Avesta, (Livro de Zoroastro, o nome grego do profeta iraniano Zaratustra), da Pérsia, Os Vedas estão entre os mais antigos textos religiosos existentes.

Além de seu valor espiritual, eles também oferecem uma visão da vida cotidiana na Índia antiga. Já os Upanishadas, escritos mais tarde (ao redor do séc. VII), falam mais especificamente da “revelação”, que os “budas”, os iluminados, teriam recebido de Brahama (brahman = Absoluto), o deus supremo, criador do Universo, tendo a seu lado Shiva (o Conservador) e Vishnu (o Destruidor), que compõem uma trindade dentro da unidade.

O Buda mais conhecido é Sidarta Gautama, mestre religioso e fundador do Budismo, no século VI antes de Cristo. Ele é visto como o último Buda de uma linhagem de antecessores, cuja lenda se perdeu no tempo. Conta o mito que ele atingiu a iluminação durante uma meditação sob a árvore Bodhi, quando mudou seu nome para Buda, que em sânscrito significa iluminado, desperto, esclarecido. A grande novidade proclamado por Sidarta é a rejeição do sobrenatural. Sua pregação, a rigor, não é religosa mas filosófica e espiritual, pois a doutrina do grande guru nos ensina que a salvação não está em nenhum deus transcendetal, mas na purificação do espírito humano. A partir da sua pregação, a religião indiana adquira nova feição, ficando difícil, hoje em dia, diferenciar o Hinduísmo (ou Bramismo) do Budismo, que se difunde, além da Índia toda, pela China, Japão e Tibet, chegando até o Brasil, e adquirindo aspectos diferenciados nos vários países.

A concepção de vida na cultura indiana, que se encontra nos antigos Bramanas, posteriormente retomada por Buda e seus seguidores, repousa na crença na transmigração do espírito após a morte ou reincarnação, na recompensa pelas nossas ações (dogma da retribuição numa vida futura, que pode ser humana, celeste ou infernal: teogonia em função do mérito) e pela libertação final do ciclo de reincarnações, atingindo o nirvana, que seria a cessação do sofrimento pelo fim do apego e do desejo.

Os termos sânscritos sansara, karma e nirvana podem ser assim interpretados: o universo todo é constituído pelo “ciclo” evolutivo (sansara) de nascimento, crescimento e morte; cada ser nasce com uma “marca” (karma) determinada pelas ações passadas, conforme a lei cósmica do plantio e da colheita; a salvaçao (nirvana) só é possível pela luta contra o karma com o fim de interromper o sansara e pôr fim às reicarnações e remortes para conseguir a beatidude e tornar-se um “buda”, um iluminado, um sábio, um santo.

Mas o Budismo, como qualquer outra doutrina religiosa, tem suas contradições internas, bem como pontos inexplicáveis para quem lança mão da razão e não da fé cega. E isso porque, assim como os livros filosóficos do velho Bramanismo (Upanishadas), promovidos à dignidade de textos revelados, foram elaborados em círculos diferentes, produzindo diversas tradições, enriquecidas umas a custas das outras, também as escrituras búdicas nasceram em círculos diversos, remodeladas e codificadas como “palavras de Buda”, ao longo do tempo, pelo concerto da comunidade de seus fiéis.

Na verdade, nem o Grande Buda, Sidarta Gautama, conseguiu explicar pontos nevrálgicos de sua doutrona. Negada a transcendência, o nirvana seria a dissolução da personalidade como uma gota de água no oceano ou a alma imortal se reintegrando ao Cosmo? Ou seria apenas o livramento da dor, um pulo no nada existencial? Se a alma é puro complexo de sensações e pensamentos, a morte do corpo seria seu aniquilamento: o nirvana, portanto, seria limitado apenas à ataraxia, a ausência de preocupaçãoes neste mundo. O completo desapego está exemplificado num texto do primitivo budismo. O marido, resolvido a entrar na ordem religiosa, abandona mulher e filho e argumenta com a ex-esposa:


“Ainda mesmo que lançasse o filho aos chacais, ó miserável,
não me convencerias a voltar, pelo amor do nosso filho”.


Mas, tal pregação de insensibilidade e egoísmo contradiz textos que se encontram no budismo reformado, conforme a doutrina do “Grande Veículo”, onde a misericórdia é considerada o principal meio para a salvação, pois o amor de si implica o amor do outro:


“Os Budas, que são a paixão encarnada, adotaram todas as criaturas como se fôssem eles próprios”.


Se admitirmos a possibilidade da existência de uma alma separada do corpo, sendo a reincarnação a passagem da alma de um corpo para outro, é preciso responder, de uma forma convincente, a várias perguntas: se a alma de um recém-nascido é proveniente de outro corpo, o que acontece com o corpo abandonado? Se as almas, por serem espirituais, não se reproduzem, como explicar o contínuo aumento da população mundial? Haveria um estoque de almas vagando pelo espaço sideral na espera do nascimento de novos seres para neles se incorporarem? É indiscutível que vários princípios do Budismo, como de outros credos religiosos, não se sustentam à luz da razão. Filósofos, literatos, artistas e, especialmente, cientistas são mais aptos a responder às nossas inquietações existenciais do que profetas visionários que se acham “iluminados”, inspirados por alguma divindade. A tentativa de explicar a relação entre o princípio da materialidade (o corpo) e da espiritualidade (a alma) é conatural ao homem, como ser inteligente. Existia anteriormente à formulação da doutrina budista e será retomada posteriormente pela doutrina espírita.

Os Avestas, os livros sagrados do antigo povo persa, registram uma civilização que remonta ao século XX a.C. A religião, que passou a se chamar Zoroastrismo, foi codificado pelo filósofo persa Zaratustra, em meados do séc. VI a.C. Como lembramos acima, ao redor do ano 2000 a.C., o Norte da Índia foi invadido por povoações semi-nômades, originárias da Rússia, da Pérsia (atual Irã) e da Ásia Central. O povo ariano, cuja remota origem remonta a cinco mil anos a.C., talvez precedesse o egípcio no alcance de um certo grau de civilização. Os antigos Árias, que falavam uma língua (extinta há muito tempo) considerada a mãe de vários idiomas indo-europeus (sânscrito, grego, latim, alemão, entre outros), já tinham regras sociais, éticas e religiosas, chegando a dividirem a sociedade em castas.

O próprio nome arya, que em sânscrito significa “nobre”, indicava uma classe social. Sua época de esplendor aconteceu durante as dinastias arquemênidas (550-330), cujo mais ilustre descendente, o rei persa Dario II, venceu Medas e Babilônios, que tinham dominado os Assírios. Alexandre Magno, da Macedônia, herdou o imenso domínio dos arquemênidas (330 a.C.) e estendeu seu império sobre as cidades gregas e o Egito, chegando a conquistar boa parte do território indiano. Ele, que foi educado pelo filósofo Aristóteles, divulgou a cultura grega pelas regiões ocupadas, dando origem ao Helenismo, que acabou suplantando civilizações mais primitivas, fundamentadas predominatemente em crenças religiosas.

Os Avestas narram que o deus Ormuz, cerca de 16 mil anos atrás, apareceu ao profeta Yima, também chamado de Ram (na epopéia hindú Ramayama, o herói se chama Rama), revelando-lhe sua história e doutrina. Ormuz teria criado o mundo em seis etapas (olhem a semelhança com o livro bíblico do Gênesis!). A vida vegetal, animal e humana seria regida pelos princípios do Bem e do Mal, ambos emanações do deus eterno. A luta entre os espíritos bons e os espíritos da maldade duraria 12 mil anos, com a vitória final das forças do bem. Os justos, purificados pelas boas ações, conquistariam o paraíso. Essas crenças têm muito a ver com o Budismo.

O pensamento reflexivo, que iniciou na Grécia com os filósofos pré-socráticos, deu início à primeira forma de humanismo, desligando filosofia, ciência e arte da religião. A não conformação com a morte é vista sob outro foco. O filósofo Heráclito, que viveu em Éfeso, cidade grega da Ásia Menor, no séc. VI a.C., quase na mesma época de Buda e Zaratustra, ensinou que a realidade está em constante movimento, renovando-se continuamente. Explica isso pela bela imagem do homem que não consegue banhar-se por duas vezes nas mesmas águas de um rio. A concepção do pantarrei (tudo flui) de Heráclito se aproxima do sansara (a trasmigração) de Buda. Mais tarde, cientistas aprofundarão os conceitos de movimento e de evolução, revolucionando a cosmologia (o heliocentrismo de Copernico, Newton e Galilei) e a biologia (A Origem das Espécies, de Darwin).

A contribuição dos dois maiores filósofos da antiguidade, Platão e Aristóteles, dos quais já falamos no capítulo anterior, é fundamental para entendermos a relação entre a alma e o corpo. A “teoria das idéias” de Platão está bem próxima da doutrina de Buda por acreditar na existência das almas separadas do corpo, que é visto como uma prisão do espírito, e por achar que “o saber é um recordar”. Já Aristóteles, contestando seu mestre, nega a separação entre a alma e o corpo, considerando o ser humano constituido de matéria (ilê) e de forma (morfê). Este conjunto, chamado de ilemorfismo, é indivisível, pois a alma é a forma, o elemento espirítual (inteligência) do corpo. Com a morte da parte material dá-se também a morte do espírito, não podendo existir um corpo humano sem o funcionamento de seu cérebro. Corpo e alma são vistos como se fossem as duas faces de uma mesma página, distingüíveis, mas inseparáveis, usando a imagem de que se serviu o ligüista suiço Saussure para explicar a diferença entre significante e significado. Sendo assim, a doutrina budista da reincarnação só pode ser aceita por ato de fé, carecendo de qualquer argumento lógico.

O próprio conceito da “ataraxia”, o fundamento teórico da prática da meditação, acompanhada pelos exercícios de yoga, característica da espiritualidade indiana, não difere muito da apatéia de filósofos gregos. O Estoicismo, iniciado no séc. IV a.C. por Zenão de Cítio, ensinava que o Universo é regido pelo Logos, a Alma do mundo, um todo racional que envolve todos os seres. Portanto, todos devem viver conforme a lei universal da Razão, que rege o macrocosmo e o microcosmo. As virtudes cardeais (razão, coragem, justiça e autodisciplina) têm por base o conhecimento e, portanto, o culto da filosofia é indispensável. O ser humano chega à sabedoria e se aproxima da felicidade quando, pela prática da autodisciplina, alcançar a “apatia”, o estado psicológico da insensibilidade perante a dor ou o prazer, não sendo vítima de paixões. O desapego confere ao indivíduo um estado de tranqüilidade e de auto-suficiência, pois o livra da dependência alheia com relação à sobrevivência ou à satisfação de necessidades físicas ou emocionais.

Tecemos tais relações para evidenciar a influência entre teologia e filosofia, que constituem o caldo cultural de regiões ocidentais e orientais, assim como entre as várias religiões que precederam o advento do Cristianismo. No próximo capítulo, veremos como o Código Hamurábi, un conjunto de leis e normas da Babilônia do séc.XVIII, irá influenciar a composição da Torá judaica. Nada impede pensarmos que estes textos, junto com o Livro dos Mortos, que foi produzido no Egito quase na mesma época a que remonta o Pentateuco (séc.XII), cujo pressuposto autor, Moisés, teria vivido aproximadamente durante a dinastia de Ramsés II, teriam influenciadas as Escrituras persianas e indianas.

O Budismo, portanto, a última das grandes religiões anteriores ao Cristianismo, pode ser considerado uma mistura de vários credos, ressalvando a peculiridade do espírito oriental. Observamos, apenas como exemplo, a semelhança entre o Decálogo de Moisés e o Pentálogo de Buda, cujos cinco preceitos são: 1) não roubar; 2) não cometer adultério; 3) não mentir; 4) não assassinar; 5) não tomar bebidas alcoólicas. Trata-se de normas de vida que transcendem qualquer religiosidade, constituindo os fundamentos do viver em sociedade, pois implicam o respeito para com nossos semelhantes.

O Budismo é a religião principal não somente da Índia, mas também da China e do Japão. Na China, o sentimento religioso encontra-se registrado no antigo I Ching (Livro das Mutações), cuja escrita foi iniciada a partir do séc. XV a.C., após uma longa tradição oral. No século VI, quase contemporaneamente ao aparecimento de Buda na Índia, surgiram dois grandes sábios chineses: Confúcio (551-479) e Lao Tsé, o fundador do Taoísmo. Confúcio, também chamado o Venerável Mestre Kung, antecipou, de alguma forma, o pensamento do filósofo grego Sócrates, que irá ensinar a conhecer-se a si próprio (gnose te ipsum):


“Quem não sabe o que é a vida – ele perguntava –
como saberá o que é a morte?”


Ao meu ver, a grande contribuição de Confúcio para o progresso da humanidade é o estímulo ao trabalho. Qualquer tarefa bem executada, feita com amor, satisfaz o ego individual e torna o homem útil à sociedade. Tal filosofia de vida, diferentemente do quietismo indiano, se difundiu pelo Oriente, caracterizando especialmente a cultura japonesa e coreana. O outro sábio chinês, Lao Tse, também chamado de Laozi, ensinou o “caminho” (tao) que leva à harmonia entre os dois princípios universais: o Yang (“o brilho do sol”), o símbolo do calor, da claridade, da força, da racionalidade, da masculinidade; em oposição ao Yin (“o brilho da lua”), que caracterizaria o elemento feminino, o instinto individual.

No Japão, a religião original é o Xintoísmo, xintó significando “caminho dos deuses”. Ao contrário de outras religiões antigas e modernas, o Xintoísmo não possui um fundador específico, nem dogmas bem definidos. Conforme a tradição oral, cuja origem se perde na noite dos tempos, depois de sete gerações de divindades nascidas do próprio Cosmo, veio à luz o último casal, Izanagi e Izanami, ao qual se atribui o papel da criação do mundo. Os dois se uniram como macho e fêmea e do corpo de Izanami nasceram as oito ilhas que compõem o território do Japão. Na verdade, para os xintoístas, os deuses são personificações de forças naturais. Características de divindade eram atribuídas também aos antepassados e ao Imperador.

Mas, na medida em que a mensagem de Buda começou a se espalhar pelas ilhas japonesas, começou um sincretismo, colocando-se no mesmo panteão divindades xintoístas e budistas. A partir do séc. XII d.C. penetrou no Japão, proveniente da China, uma forma peculiar de Budismo, que passou a se chamar Zen (meditação), que deu mais importância à instrução de mestre para discípulo do que à doutrina escrita. O movimento “zen” deu origem à formação de um Budismo propriamente japonês, centrado na figura do samurai, um ideal de herói sábio e invencível, que ultrapassou as fronteiras do Japão.

Conforme releva Christopher Hitchens (Deus não é grande), não há uma solução “oriental”, no que diz respeito à religião. As pessoas que se cansaram dos ensinamentos do Velho e do Novo Testamento ou do Corão e procuraram refúgio em formas religiosas alternativas, buscando o nirvana pela prática da yoga, da vida contemplativa ou de dietas vegetarianas, também encontraram desilusão. Os conflitos étnicos e religiosos do Oriente são tão execráveis quanto os do Ocidente.

O Tibete, mesmo antes da dominação chinesa, sofria com governos monárquicos e hereditários, que impunham um domínio feudal, com punições hediondas e servidão do povo a uma elite monástica parasitária. O pacifismo oriental não deixa de ser um mito, pois são constantes os massacres entre tribos, motivados por diferentes etnias e credos. A ilha do Sri Lanka está arruinada pelas brigas entre budistas e hindus. O homem que, para superar o materialismo, adormece seu raciocínio e renuncia a sua faculdade crítica, em busca de uma “iluminação” interior ou transcendental, acaba jogando fora sua mente junto com as sandálias.