Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na platéia, sentados ao pé um do outro.

Ele interessava-se muito pelo espetáculo, e de vez em quando me fazia ao ouvido algumas observações críticas, tratando-me pelo meu nome.

Eu estava um tanto contrariado: não gosto de conversar com pessoas que não conheço; mas o meu vizinho da platéia me parecia um homem tão simples, que no meu espírito não se formou nenhuma prevenção desairosa a seu respeito.

— Veja como o F. está representando mal! - disse-me ele, referindo-se a um ator que na realidade metia os pés pelas mãos. - É pena que o F. seja tão mau artista, sendo tão bom rapaz!

— Conhece-o?

— Há muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadão numa boa casa, mas prefere ser ator, para fazer esta figura que se está vendo!

Acabado o espetáculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e lá estava o nosso homem, que me queria obrigar a sentar-me junto dele; agradeci-lhe o obséquio e tomei lugar noutra mesa.

Daí a instantes entrou o ator, o tal que não queria ser guarda-livros, e sentou-se perto de mim.

Perguntei imediatamente:

— Você sabe me dizer quem é aquele sujeito?

— Não sei. Conheço-o de vista há longos anos... somos velhos camaradas... tratamo-nos por tu... mas ignoro como se chama e qual seja a sua ocupação.

— É singular!

— É, não há dúvida; mas a vida carioca tem destas coisas...



Depois disso, eu encontrava constantemente o desconhecido nas ruas nos teatros, nos bondes, nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito que fazer.

A princípio cumprimentava-me com certa reserva cerimoniosa; mas pouco a pouco os nossos repetidos encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo afetuoso:

— Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarrônico: - Adeus, Arturibus!

Como nos encontrássemos num leilão (ele freqüentava muito os leilões, mas não comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitável conselheiro B, a quem perguntei depois:

— O conselheiro faz-me um obséquio?

— Estou às suas ordens.

— Diz-me quem é aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro?

— Oh! o senhor não o conhece?

— Não.

— Nem eu! - Há muitos anos lhe falo... trata-me com certa intimidade... mas não sei como se chama nem quem é.

— Deveras?

— Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se dá com o mundo inteiro.

E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectível resposta:

— Conheço-o há muitos anos, mas não sei quem é.



O seu tipo nada tinha de característico nem de anormal. Ele vestia-se de um modo que nenhuma indicação poderia fornecer sobre a sua vida ou sobre os seus hábitos. A última vez que o vi, ele trazia, aparentemente, a mesma sobrecasaca, as mesmas calças brancas e o mesmo chapéu alto com que estava aquela noite no teatro.

Bem quisera eu perguntar-lhe: - Como te chamas? - e seria esse um meio infalível de saber o seu nome todo; mas isso é lá pergunta que um homem possa fazer a um camarada que há vinte anos o trata por tu...

Um dia lancei mão de um ardil:

— Tens aí um dos teus cartões de visita para a minha coleção? Estou reunindo num álbum os cartões de todos os meus amigos.

— Cartões de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa ridícula exigência da vida social. Sou um boêmio. - Adeus, Arturibus.



E era, efetivamente, um boêmio.

Entretanto, dispunha de recursos, não pedia nada a ninguém e, de vez em quando, fazia longas que eu o supunha morto.

Quando já estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapéu alto e sozinho sempre, dizendo que tinha feito um viajão.



Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande ajuntamento de povo às portas de uma farmácia.

Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido.

Era um homem que, passando por ali, entrara incomodado e falecera subitamente de uma síncope cardíaca. Estavam à espera da carrocinha que devia levá-lo para o Necrotério.

Entrei na farmácia e reconheci que o morto era ele, o meu misterioso amigo.

O farmacêutico, homem já maduro, conhecia-o tanto como eu.

— Conhecemo-nos há longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por tu, não me passava pela porta que não me dissesse: - Adeus, Joãozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem a residência.

Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava o nome à pessoa.



O cadáver foi removido para o Necrotério.

— Até que afinal vou saber quem ele era! A identidade do morto há de ser reconhecida pela polícia.

Pois não foi. A polícia nem ao menos descobriu o domicílio do meu amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade é que figurou no obituário como "um desconhecido de 50 anos presumíveis".

Quem ele era?