Coelho era o nome do mancebo que festejara tão lautamente o carnaval na última noite, que saíra por último do hotel, que encontrara a carteira na Rua de S. José e ficara logrado nas suas esperanças.

Tinha vinte e seis anos e exercia o emprego que lhe dava para comer, vestir, e gozar a vida, desde que não quisesse ir além dos limites razoáveis que a posição lhe impunha.

Nesse ponto, é que pegava o carro.

Coelho tinha mais ambições que dinheiro, e não há pior situação que a de um homem cujo espírito está acima das algibeiras. Ter a algibeira acima do espírito, dizem os poetas que não é coisa de todo desejável: estou que falam teoricamente.

Em todas as loterias, comprava um meio bilhete que lhe saía invariavelmente branco. Um dia, conseguiu tirar quarenta mil-réis, fato que coincidiu com a queda do ministério de Caxias e a morte de um parente chegado. Gastou os vinte mil-réis recebidos no aluguel do carro, na compra de luvas para ir ao enterro, e deu o resto a um pobre.

Casamento rico era uma das suas ambições, mas em vão alongava os olhos pela cidade; não aparecia noiva que lhe ficasse à mão.

Coelho desistiu do intento.

Ultimamente, parecia resignado à sorte. Começou a viver solitário, e desse programa só o carnaval o arrancou por três dias. Foi muito festejado pelos amigos e respectivas damas e fez coisas do arco-da-velha. Mas aquela exceção acabou com o último dia: na quarta-feira de Cinzas, reatou o fio à regra.

O achado da carteira pareceu-lhe providencial, e desde o lugar onde se deparara o misterioso objeto, até o fim da Rua da Ajuda, foi fazendo mil castelos no ar.

Já sabemos como se lhe dissiparam todos. Ao dia seguinte, tão pobre estava como na véspera.

Só uma grande e excepcional dedicação aos negócios públicos poderia fazer que um rapaz fosse à repartição depois de uma terça-feira de carnaval. Coelho levantou-se da cama, à hora em que o criado foi cumprir a ordem de o acordar.

Almoçou pouco e tratou de vestir-se para sair. Antes disso, olhou de relance a carteira que estava sobre a secretária.

— José! disse ele.

— Senhor.

— Hás de levar um anúncio ao Jornal do Comércio.

E olhando a carteira:

— Se tu soubesses, miserável objeto, as ilusões que me deste ontem! E com as ilusões os terríveis desenganos que sofri... Por que não trouxeste em teu bojo uns vinte contos pelo menos? — Era pouco, mas era alguma coisa...

Dizendo isto, foi maquinalmente abrindo a carteira. Inventariou de novo os papéis que havia dentro; abriu de novo todos os escaninhos; nada! Ia já deitá-la a um canto com um gesto de desespero, quando, entre duas notas de dois mil-réis, descobriu um papelinho dobrado.

— Que é isto? dizia ele.

O papel era fino, azulado e perfumado. Cheirava a amores. Coelho desdobrou-o rapidamente com a ansiedade própria de quem fareja mistérios. A letra era bem talhada e segura; poucas linhas eram, e diziam assim:

“18 de Fevereiro.

“Meu C...

Meu tio vai amanhã para a Tijuca, e minha tia há de ter visitas. Vem amanhã ao jardim; estarei na janela do fundo, e contar-te-ei o que se passou. — Tua L...”

Eu faltaria à verdade e às regras mais elementares do romance se não dissesse que o rapaz leu e releu esta carta muitas vezes. Não faltaria tanto às regras do romance, mas faltaria com certeza à verdade, se não contasse que à sexta ou sétima leitura o nosso herói deu dois pulos no gabinete, pregou os olhos no teto e chegou a carta aos lábios.

A causa dessa alegria, na aparência inverossímil, sabê-la-á o leitor desde que eu lhe disser que o papel da carta era marcado, e que a marca constava de duas iniciais, Z. Y., que estas duas iniciais eram as de Zózimo Ypsilanti, e que este nome arrevesado era de um grego que naquele tempo negociava nesta praça.

— É dele, não há dúvida, dizia o rapaz consigo; creio que em nenhuma outra língua há quem se chame Z. Y. Não; Z. Y. tem um perfume helênico. Trata-se da sobrinha de Ypsilanti; é preciso tirar daqui as vantagens possíveis. Exploremos o assunto.

Toda esta cena se passara em frente do moleque, que, desde que viu o senhor dar pulos na sala, concluiu logicamente que estaria nas fronteiras da demência. Conseqüentemente, deu dois passos para a porta com idéia de fugir apenas visse da parte do Coelho algum gesto menos pacífico, e ir logo dar parte ao inspetor do quarteirão, medida aliás inteiramente inútil, porque o inspetor só estava em casa das Ave-Marias em diante.

— José, disse Coelho, não é preciso ir levar o anúncio ao Jornal do Comércio. Viste-me dar dois pulos há pouco?

— Vi, sim, senhor.

— Foi de alegria, José; recebi uma carta de meu irmão que está na Bahia. Fizemos as pazes, e é por isso que estou alegre. Recomendo-te, porém, não digas isto a ninguém; toma estes seis mil-réis.

E deu-lhe as três notas que achara na carteira.

— Sim, senhor, obrigado.

José saiu do gabinete mais tranqüilo, contente com a explicação e o dinheiro.