Ao rés-do-chão, e por baixo das janelas, havia uma sala, com uma mesa e poucas cadeiras, iluminada por um bico de gás.
Aí entraram o vulto, Coelho e o cão.
Este foi acocorar-se a um canto com os olhos em Coelho à espera de um sinal do vulto.
Coelho e o vulto encararam-se antes de se sentarem.
— Ah! exclamou o vulto.
— Ah! exclamou Coelho.
— Pois é o senhor?
— Eu...
— Temos o eu outra vez, disse o vulto, que era nem mais nem menos Ypsilanti.
— Vou explicar-lhe tudo, disse Coelho, resolvido a contar a história da carteira, o mau pensamento que tivera, e obter assim o perdão do que acabava de fazer.
— Sente-se, disse Ypsilanti.
Coelho obedeceu. Ypsilanti sentou-se em frente dele, do outro lado.
— O senhor sabe, disse o velho tio de Lúcia, que acaba de fazer uma coisa muito feia.
— Sei, sim, senhor.
— Uma coisa horrível, que eu não lhe perdoarei jamais?
Coelho estendeu a mão:
— Se me quiser ouvir, disse ele.
— Ouvi-lo? Mas que me dirá o senhor para justificar o que acaba de fazer? É desse modo que pretende haver alguma coisa que possuo? Está em minhas mãos, e eu posso fazer do senhor o que quiser. Que diria o senhor se eu o denunciasse à polícia como ratoneiro?
— Senhor!
— E ratoneiro é o senhor, porque tirar um par de galinhas de um quintal e um par de contos da algibeira de um homem honesto, é a mesma coisa; só difere o meio. O senhor quis tirar-me um par de contos...
— Enfim, — disse Coelho ansioso por explicar tudo, e chamar o furor do velho para o verdadeiro ratoneiro, como ele disse, — enfim, eu espero convencê-lo de que não sou tão culpado como pareço.
— Há de ser difícil.
— Não é.
— Estou ouvindo.
Ypsilanti tirou um charuto do bolso, acendeu e começou a fumar tranqüilamente, enquanto Coelho começava a narração do achado da carteira e do pensamento que tivera: não lhe ocultou que a circunstância de não ter dinheiro, que a ambição de possuir alguma coisa o levara àquele erro.
— Tal é, senhor Ypsilanti, o motivo que aqui me trouxe. Foi um erro de que eu me envergonho, mas o senhor pode ver na franqueza com que eu confesso tudo, o arrependimento que já tenho do que fiz. Agora, só me resta pedir o seu perdão... ou expor-me ao que o senhor quiser fazer.
Ypsilanti soltou uma gargalhada.
Coelho enfiou.
— De que se ri? disse ele.
— De que me hei de rir? Da sua imaginação fecunda. Em tão pouco tempo, criou o senhor um romance, que eu poderia aceitar se já não tivesse estes cabelos brancos.
— Pois crê...
— Não creio em nada do que o senhor me disse...
Coelho encolheu os ombros.
— Então, não sei o que lhe hei de dizer...
— A verdade.
— Já a disse.
— Não; a outra.
— Não há senão esta.
— Quero ouvir a outra verdade, que é a única verdadeira. E não é melhor ser franco? Por que não me confessa que ama minha sobrinha, que esta lhe corresponde, e que o senhor nutre a esperança de casar com ela?
Ypsilanti disse estas palavras com um modo tão brando que Coelho começou a ver as coisas por outra face. Esperava encontrar um tigre, e achou-se diante de um cordeiro.
Cordeiro não o era ele tanto, porque logo depois das palavras acima transcritas, rompeu nestas:
— Vamos! fale, meu atrevido! meu sedutor de donzelas!
— Eu já lhe disse a verdade.
— Não disse. A verdade é que o senhor namora a pequena há alguns meses, que tem vindo algumas vezes ao jardim, segundo me consta, que lhe escreve e é correspondido.
Coelho fez um gesto para falar.
Ypsilanti continuou:
— E pensa que não sei a razão por que me não tem falado? É porque receia que eu lha recuse. Sabe que eu tenho fama de severo e que só admitirei casamento em condições vantajosas... Esta é a verdade.
Ypsilanti estava outra vez com o modo brando, e Coelho de novo se animou a tirar proveito da situação.
— Ora, conquanto eu deseje para minha sobrinha um noivo rico, não faço disso questão principal. Pode ser pobre e honesto. Se está nessas condições, por que não me fala? Era melhor; não daria que falar.
Luziu nos olhos de Coelho a posse de algumas dezenas de contos de réis. Era argumento melhor que todos os raciocínios. A disposição de Ypsilanti o animou a dar mais um passo.
— Pois, senhor Ypsilanti, disse Coelho; tudo confesso; é verdade, eu amo sua sobrinha e peço-lha em casamento. A ocasião não é talvez própria, mas...
— Própria é, disse Ypsilanti; mas confesse que procedeu muito indignamente até hoje, e que, se eu não fosse uma boa alma, o senhor devia estar morto a esta hora.
Dizendo isto, bateu o velho com a mão na mesa; o cão grunhiu do seu lugar; e Coelho cuidou seriamente que ainda não estava salvo.
Mas tudo passou depressa.
— Pois, senhor, venha amanhã pedi-la oficialmente. E prometa desde já que a há de fazer feliz.
— Juro! disse Coelho. E peço-lhe que acredite, senhor Ypsilanti, que não é a idéia da sua riqueza que me fez amar sua sobrinha, mas...
Ypsilanti sorriu.
— Bem sei, bem sei, disse ele.
Depois acompanhou-o até à porta do jardim.
— Até amanhã.
— Até amanhã.