Coelho abençoou o acaso e o carnaval, autores do achado da carteira anônima e da misteriosa carta que o levou à fortuna.

Começou a freqüentar a casa de Ypsilanti, logo no dia seguinte, à espera de uma ocasião em que pudesse esclarecer o mistério que parecia estar envolvido na indiferença com que Lúcia o ouviu e aceitou.

Durante oito dias, não pôde ter a ocasião desejada.

No nono dia, porém, alcançou ensejo de falar a sós com a noiva, e desde as primeiras palavras notou que ela, em vez de lhe dizer alguma coisa a respeito da situação em que se achava, conversou placidamente dos seus planos futuros.

— Lúcia, disse ele, aproveito esta ocasião para explicar-te a nossa situação.

— Que situação?

— A situação em que me coloquei para contigo. Naquela noite em que fui ao jardim conversar...

— Ah! eras tu? perguntou ela admirada.

Mais admirado, porém, ficou o nosso Coelho. Eras tu! Então ela confessa que, dez dias antes, supunha ter falado ao outro namorado, e apesar disso ia casar com ele, sem nenhum escrúpulo nem resistência?

Havia aí um mistério. Como descobri-lo?

— De um modo simples, disse Coelho consigo mesmo; pergunto-lho.

E depois de um silêncio:

— Lúcia, pergunto-lhe; admiras-te de que fosse eu quem naquela noite estava no jardim; supunhas então que era o outro... Quem?

Lúcia franziu a testa, levantou a cabeça, mediu e rapaz de alto a baixo e saiu da janela.

— Está tudo perdido, pensou Coelho; lá se me vai a pequena, e com ela... Reparemos o erro.

O erro não era difícil reparar. Lúcia parece que esperava por isso mesmo.

— Olhe, disse ela, há um mistério aparente, mas uma coisa muito natural, que eu só lhe explicarei depois de casada.

E disse isto com um ar tão mimoso, que por um triz não endireita a boca.

Coelho deu-se por satisfeito.

Foi marcado o dia do casamento e começaram a correr os banhos. Lúcia estava mais alegre que a mais alegre moça deste mundo; Ypsilanti dignou-se abrir um riso prazenteiro; e Coelho fez grandes promessas aos seus credores.

Dez dias antes do casamento, estava Coelho em casa devaneando e construindo os mais soberbos castelos, quando o moleque veio dizer-lhe que um sujeito mal-encarado o procurava.

— Conheces quem seja?

— Nunca o vi, não, senhor.

— Manda-o entrar.

Daí a pouco chegava Coelho à sala e dava com um homem alto, vestido de preto, sobrecasaca abotoada, cabelos em desordem e olhar ameaçador.

Coelho pôs-se em guarda.

— Que me quer?

Silêncio.

— Que me quer? repetiu ele.

— Tenho a honra de falar ao Sr. Coelho?

— Sim, senhor.

— Queria dar-lhe duas palavras.

— Pode falar.

Sentaram-se.

— Chamo-me Carlos...

— Ah!

— Ah?

Coelho estremeceu.

O homem continuou:

— Carlos Alves da Anunciação. Já ouviu alguma vez pronunciar o meu nome?

— Não me lembra...

— Lúcia devia casar comigo.

— Ah!

— Ah?

Coelho tornou a estremecer.

— E foi o senhor que me arrancou a felicidade das mãos, quem me lançou no abismo de todas as misérias, porque eu...

Não pôde continuar; tapou a cara com as mãos, e pareceu, — pareceu ao menos, — chorar à larga.

Coelho ficou comovido.

— Peço-lhe, disse este, que não me acuse...

— Não o acuso de nada, respondeu Alves, eu apenas digo que foi o senhor quem me fez desgraçado, não por vontade própria, mas por irrisão da minha sorte. Seja o que Deus quiser...

Alves parecia mais calmo.

— Falei-lhe um pouco exaltadamente, mas é a dor que me obriga a estes arrebatamentos. Se soubesse como eu sofro!

— Mas que lhe poderei eu fazer agora? disse Coelho.

O homem pareceu não ouvir essas palavras.

— Às vezes, cuido que estou doido. Sinto um fogo em mim; uma ardência... Ah!

E, dizendo isto, começou a passear pela sala com grandes passos e sacudimentos de cabeça.

De repente, parou o homem.

— Sr. Coelho, disse ele, eu quero perdoar-lhe e não posso.

— Perdoar-me? Mas que culpa...

Coelho estacou.

Estaria o homem informado da entrevista no jardim, e teria assim descoberto o achado da carteira? Nesse caso, era positivo que a noiva estava de acordo com o antigo namorado.

Coelho perdia-se num mar de conjecturas.

— Perdoar-me o quê?

— Perdoar-lhe a minha morte.

— A sua morte?

— Sim, porque eu vou morrer.

— Não! não deve morrer! Mas, em todo caso, já lhe disse, que tenho eu com isso? Que me quer o senhor?

Alves encarou-o, pôs o chapéu na cabeça e saiu.