O juiz, que decidiu contra um litigante poderoso, e a favor de um litigante humilde, logo atraiu a si todo o sufrágio popular; a multidão o canoniza sem exame, e o faz passar por justo, inteiro, e sábio. Assim se engana, ou se deixa enganar aquela multidão cega, e sem experiência; presume no juiz um espírito de justiça, firme, e incontrastável, só porque o viu julgar contra a grandeza do poder; mas não vê que nisso mesmo quis o juiz astuto, fundar a sua grandeza própria; oprimiu injustamente ao grande (porque nem sempre a razão, e a justiça estão da parte dos humildes); aquele foi o meio que buscou para fazer-se admirável entre todos, e adquirir reputação em poucas horas: uma só injustiça lhe deu a opinião de justo; uma só iniquidade o fez ilustre; talvez que uma vida longa, e cheia do exercício da justiça verdadeira, não fizesse tanto; isso mesmo previu o maligno julgador; por isso quis anticipar-se aquela glória, ou vaidade, por meio de um crime, que o vulgo comummente não supõe; daquela sorte conseguiu um alto nome; mas que importa, ele mesmo o desconhece; todos o têm por justo, e só ele não se tem a si; o engano produziu o efeito para os mais, para ele não; todos o estimam porque o crêem justo, e só ele se repreende, porque interiormente sabe que o não é; a todos pode enganar, só a si não; a consciência, que não teve para julgar a outrem, tem-na (a seu pesar) para julgar-se a si; em si mesmo tem um Tribunal, que o acusa, e que conhece claramente o seu delito; aquele conhecimento é o por onde começa desde logo a sua pena; a sentença contra um julgador ímpio, ele mesmo a pronuncia; e por mais que a vaidade (depois que o fez errar) o ponha em um perpétuo esquecimento do seu erro, contudo lá vem algum tempo em que parece, descansa a vaidade, e desperta a consciência; esta nem sempre vive em um letargo, às vezes se levanta como estremecida, e assombrada; então a ouvimos suspirar dentro de nós, à maneira de um gemido queixoso, ou eco triste, que sai do fundo interior de um ermo solitário; o coração se sobressalta, e enternece; um horror gelado, e frio, parece que o cobre, e lhe suspende o movimento; só então podemos ver aquela luz serena, e pura, luz da justiça, e da razão; então se vê, que a vaidade é de todas as ciências, e que ainda aquela, que tem a justiça, e a razão por instituto, nessa mesma se introduz a vaidade. Quem dissera, que a escuridade das trevas pode ter lugar na mesma parte em que a luz preside! Que à vista da fermosura, pode ter veneração a fealdade! Que uma voz irracional, e rouca, pode entrar sem desordem no concerto da harmonia! Que entre as pedras preciosas pode ter valor a pedra tosca! Que o metal grosseiro tem um preço igual ao metal brilhante! E finalmente quem dissera, que no templo da divindade, pode ter algum culto, o ídolo! Entre extremos tais, a distância que há, é infinita; e com efeito entre o vício, e a virtude; entre o engano, e a verdade; e entre a injustiça, e a justiça, não há caminho certo, nem proporção, que se conheça; o mesmo meio parece que é injusto, e vicioso. Mas que importa: a vaidade faz, que não seja excessiva a distância dos extremos, porque quando os não pode chegar, e unir, faz com que ao menos se possam ver de longe; é o que basta para de algum modo os concordar, e tudo sem mais força, nem trabalho, que o de dar à verdade alguma sombra, algum pretexto ao vício, e alguma cor à injustiça; e assim enquanto houverem cores, sombras, e pretextos, hão-de padecer a verdade, a justiça, e a virtude.