Revista da Exposição Anthropologica Brazileira/J. de Anchieta 1

DOS CASAMENTOS DOS INDIOS DO BRAZIL
 

I

 

Os indios do Brazil parece que nunca têm animo de se obrigar, nem o marido á mulher, nem a mulher ao marido, quando se casam ; e isso a mulher nunca se agasta porque o marido tome outra ou outras, reste com ellas muito ou pouco tempo, sem ter conversação com ella, ainda que seja a primeira ; e, ainda que a deixe de todo, não faz caso disso, porque se é ainda moça ella toma outro, e se é velha assim se fica sem esse sentimento, sem lhe parecer que o varão lhe faz injuria nisso, sobre tudo se isso o serve e lhe dá de comer, etc. E de ordinario tem paz com suas comborças, porque tanto as têm por mulheres de seus maridos, como a si mesmas. Em Piratininga, da capitania de S Vicente, Cuy obiy, velho de muitos annos, deixou uma de sua nação, tambem muito velha, da qual tinha um filho homem muito principal, e muitas filhas casadas, segundo seu modo, com indios principaes de toda a aldêa de Jaribãtiba, com muitos netos, e sem embargo disso casou com outra, que era Guayanã das do mato, sua escrava, tomada em guerra, á qual tinha por mulher, e della tinha quatro filhos, e esta trazia consigo, e com ella estava e conversava, e depois a recebeu in leye gratia, sem a primeira mulher nem os filhos e genros fazerem por isso sentimento algum.

O mesmo fez Araguaçú, indio tambem principal e velho, que casou com uma escrava sua, moça, Tamoya, que havia muito pouco tomára em guerra, sem fazerem caso disso, nem o tomarem por affronta, outras duas mulheres que tinha, e filhos já homens, e uma filha já mulher casada. E se algumas mulheres mostram sentimento disso, é pelo amor carnal que lhe têm e pela conversação de muito tempo, ou por elles serem principaes; mas logo se lhes passa, porque ou se contentam com os filhos que têm, ou se casam com outros ; e algumas ha que dizem aos maridos que as deixem, que lhes bastam seus filhos, e que elles tomem outra qual quizerem.

E se a mulher acerta ser varonil e virago, tambem ella deixa o marido, e toma outro, como me contaram que fez a principal mulher de Cunhãbêba, que era o principal mais estimado dos Tamoyos que havia na comarca de Yperuig, do qual tinha já um filho e uma filha casadoros, e comtudo isso o deixou por elle ter outras, ou pelo que quiz, e se casou ou amancebou com outro ; e outras fazem o mesmo, sem sentimento dos maridos; e assim nunca vi, nem ouvi, que com o sentimento de adulterio algum indio matasse alguma de suas mulheres ; quando muito espancam o adultero se podem, e elle tem paciencia pelo que sabe que tem feito, salvo se é algum grande principal, e a mulher não tem pai ou irmãos valentes de que elle tenha medo, como me contaram de Ambirem, um grande principal do Rio de Janeiro, naturalmente crudelissimo e carniceiro, e grande amigo dos francezes, o qual de algumas vinte mulheres que tinha, por lhe fazer uma adulterio, a mandou atar a um pão e abrir com um manchil pela barriga ; e o adultero, que era un seu sobrinho, andou algum tempo ausentado delle com medo de ser morto ; mas isto bem parece que foi lição dos francezes, os quaes costumam dar semelhantes mortes, porque nunca indio do Brazil tal fez nem tal morte deu. O mesmo, e peior, e com maior facilidade, fazem outros ás mancebas, por onde parece não é o sentimento pelas terem por legitimas mulheres ; senão haveria ciumes, como fez Tumandiba, grande principal de Piratininga, que enforcou uma sua mauceba, que era sua escrava, tomada em guerra ; e o outro indio da aldêa de Marranhaya á outra sua manceba, escrava da mesma maneira (se bem me lembra): quebrou a cabeça com uma fouce, ou por ellas andarem com outros, ou ao menos pelo suppôrem.

Agoaçã, que é nome commum a homem e mulher, significa barregão ou manceba commum a qualquer homem ou mulher, ainda que não tivesse com elle ou com ella mais que um só congresso ; e com as taes andam ás escondidas (como se faz em todo o mundo), e por isso ao tal acto chamam tambem mandaró sc. furtum ; e se algum filho hão desta maneira, chamam-lhe filho de meu barregão ou de minha manceba, ou mandaró á guera sc. furtum meum. E isto têm por máo, e assim respondem todos quando se examinam para o baptismo.

Mas se as têm de sua mão, de maneira que ellas não andam com outros (nisi fortè furtim), andam no mesmo foro que as que chamam Temirecó sc. uxores, e parece que com o mesmo animo se ajuntam com ellas que com as mulheres, sem fazerem differença nisso, e tão pouco sentimento têm de andarem com ellas como com as mulheres ; e assim quando os examinam para o baptismo, dizem que tantas ou tantas vezes se furtaram dellas (ut ipso verbo utamur) e andaram ás escondidas com outras, como o dizem daquellas a que chamam Temirecó, e tão depressa e tão sem pejo estão com ellas como com as mulheres ; ainda que destas poucas vi nos indios, comtudo de agoaçá, porque commummente a todos chamam Temirecó, e com este nome têm diversas em differentes aldêas, e todas no mesmo fôro que aquellas que têm comsigo mais de assento em sua propria aldêa.

 
Padre José de Anchieta
 
(Revista do Instituto.)
 

 

DOS CASAMENTOS DOS INDIOS DO BRAZIL
 

II

 

Os mancebos baptizados em pequenos em Piratininga, como não estavam sujeitos quando cresciam, e outros indios christãos viuvos, tomavam moças gentias ou christãs, e as tinham em seus lanços como mulheres, com filhos, sem nota alguma, e a estas taes lhes costumavam chamar os outros a mulher de N., sabendo muito bem que o não eram por serem elles christãos, e não as terem recebido na igreja ; e se alguns destes mancebos se ia ao sertão, e lá se amancebava (como muitos faziam), diziam os pais: « Já N. tem mulher no sertão,» usando todos estes do nome de Temirecó.

Temirecó chamam ás contrarias que tomam na guerra, com as quaes se amancebam, e ainda que sejam christãs, como eram muitas escravas dos portuguezes, que tomavam os Tamoyos em saltos, e as mesmas mestiças filhas dos portuguezes, as quaes tinham por mulheres como as suas proprias de sua nação.

Temericó chamavam ás indias mancebas dos portuguezes, e com este titulo lh’as davam antigamente os pais e irmãos quando iam a resgatar ás suas terras. como os Tamoyos e Termiminôs do Rio de Janeiro e do Espirito Santo, os Tupis de S. Vicente, os Tupinambás da Bahia, e finalmente todos da costa e sertão do Brasil, dizendo-lhes : « Leva esta para tua mulher, » com saberem que muitos daquelles portuguezes eram casados ; e ainda que os portuguezes as tinham por mancebas, comtudo as tinham de praça nas aldêas dos indios, ou fóra dellas, com mulher, filhos e filhas, porque para os indios não era isto pejo nem vergonha, e lhes chamavam Temericó e mulher de N., e a elles genros, e os portuguezes aos pais e mãis dellas sogros e sogras, e aos irmãos cunhados, e lhes davam resgates, ferramentas, roupas, etc., como a taes, como os indios a que chamam genros lhes vão a roçar ou pescar algumas vezes, por onde não parece serem estes sufficientes signaes de matrimonio nem de parte dos que se amancebam com ellas, nem dos pais ou irmãos que lh’as dão.

O nome de Temirecó etê, sc. Uxor vera, creio que o tomaram dos padres, que lhes queriam dar & entender a perpetuidade do matrimonio, e qual é mulher legitima, porque deste vocabulo ctê, que quer dizer legitimo, usam elles nas cousas naturaes da sua terra, e assim a seu vinho chamam cãoy etê, vinho legitimo verdadeiro, á differença do nosso a que chamam cãoy áyà, vinho agro. A suas antas chamam tapiîreté, verdadeira, e as nossas vaccas á sua semelhança chamam tapyruçú, vaccas grandes, etc. Mas na materia de parentesco nunca usam deste vocabulo eté ; porque, chamando pais aos irmãos de seus pais, e filhos aos filhos de seus irmãos, e irmãos aos filhos dos tios irmãos dos pais, para declararem quem é seu pai, ou filho verdadeiro, etc., nunca dizem xerúbetê, meu pai verdadeiro, senão xerùba xemonhangára, meu pai qui me genuit, e ao filho xeratra xeremimonhanga, meu filho quem genui ; e assim nunca ouvi a indio chamar á sua mulher xeremirecô etê, senão xeremirecô (simpliciter) ou xeraicig, mãi de meus filhos ; nem a mulher ao marido xemeneté, maritus verus, senão xemêna (simpliciter) ou xemembîra rûba, pai de meus filhos, do qual tanto usam para o marido como para o barregão ; e se alguma hora o marido chamar alguma de suas mulheres xeremirecô etê, quer dizer—minha mulher mais estimada ou mais querida—a qual muitas vezes é a ultima que tomou, porque etê tambem quer dizer fino ou estimado, como caâ etê, mato fino, de boa madeira, igbíra eté, páo fino, rijo, etc.

Padre José de Anchieta.
 
(Revista do Instituto.)
 

 

DOS CASAMENTOS DOS INDIOS DO BRAZIL
 

III

 

A’s filhas das irmãs não chamam temericó etê, nem por taes as têm ; porque muitos indios com terem muitas sobrinhas, e muito gentis mulheres, não usam dellas; mas, como os irmãos têm tanto poder sobre as irmãs, têm para si que lhes pertencem as sobrinhas para as poderem ter por mulheres, e usar dellas ad libitum se quizerem, assim como as mesmas irmãs dão a uns e tiram a outros. Taragoaj, indio muito principal na aldêa de Jaribatiba, que é no campo de S. Vicente, tinha duas mulheres, e uma dellas era sua sobrinha, filha de sua irmã ; e quando se baptizou deixou a sobrinha, ainda que era mais moça, e casou com a outra.

O terem respeito ás filhas dos irmãos é porque lhes chamam filhas, e nessa conta as têm ; e assim neque fornicarie as conhecem, porque têm para si o parentesco verdadeiro : vem pela parte dos pais, que são os agentes ; e que as mãis não são mais que uns sacos, em respeito dos pais, em que se criam as crianças, e por esta causa os filhos dos pais, posto que sejam havidos de escravos e contrarias captivas, são sempre livres e tão estimados como os outros ; e os filhos das femeas, se são filhos de captivos, os têm por escravos e os vendem, e ás vezes matam e comem. ainda que sejam seus netos, filhos de suas filhas, e por isso tambem usam das filhas das irmãs sem nenhum pejo ad copulam, mas não que haja obrigação nem costume universal de as terem por mulheres verdadeiras mais que a outras, como dito é. E por esta causa os padres as casam agora com seus tios, irmãos das mãis, se as partes são contentes, pelo poder que têm de dispensar com elles, o qual até agora se não fez com sobrinho filho de irmão, nem ainda em outros gráos mais afastados, que vêm pela linha dos pais, porque entre os indios se tem isto por muito estranho.

Os que têm muitas mulheres, a que chamam temirecô, não é possível saber-se com qual dellas se juntaram com animo marital, porque nem elles entendem quanto importa fallar nisto verdade, nem o sabem dizer realmente, porque para com todas tiveram o mesmo animo. E muitas vezes querem mais á segunda, terceira. quarta, e ainda á ultima, que ás outras, e por serem ou mais moça, ou mais fecundas, ou filhas de principaes. E não ha certeza para que cæteris paribus se haja de presumir em favor da primeira, antes muitas vezes nestas ha menos duvida e mais probabilidade que não tiveram animo de se obrigar a ellas ; porque, como então são mancebas, ás vezes tomam alguma velha de que não esperam ter filhos, porque não acham outra, somente para que lhes faça de comer, porque se acertam de não terem mãi ou irmãs, que tenham cuidado delles, são coitados, e contentam-se por então com qualquer velha, com que estão bem agazalhados, sempre com olho em tomarem outras de que tenham filhos, como depois fazem, ou deixando a primeira, ou retendo-a, se ella quer, para o effeito sobredito ; e como entre os indios ha muito poucas mulheres meretrizes e devassas, e a carne aperta com os moços, tomam qualquer que acham, ou velha ou moça, ainda que não seja muito a seu gosto, porque por então não podem mais, esperando e tendo quasi por certo que terão depois outras, como acontece principalmente se são valentes nas guerras ou filhos de grandes principaes, porque então os pais lhes dão as filhas, e os irmãos as irmãs, e a estas se affeiçoam mais que á primeira, a qual parece que não tomaram senão ad tempus, nem têm animo de se obrigar a ellas, nem ellas a elles, porque já ellas sabem que elles hão de tomar outras quando acharem occasião e as hão de deixar.

Dos que têm uma só mulher de que houveram filhos, com a qual perseveraram até a velhice, pôde haver mais duvida, porque parece .que estes têm differente affeição e animo marital, não porque ao principio o tivessem tal, porque todos se juntam com ellas de uma mesma maneira, e também estes, como todos os outros, in preparatione animi têm muitas, e se as não tomaram, foi não por se terem por obrigados áquellas, senão porque honyeram filhos dellas, e os serviram bem, e lhes foram leaes, e nao tiveram poder para ter outras; porque a estes mesmos acontece no cabo da vida tomarem outra moça, quando a acham, maxime sendo elles principaes; mas se não têm tomado outra pela amizade e conversação de longo tempo com as primeiras, lhes vêm a tomar este amor. E quando os querem baptizar dizem que áquellas tiveram de pequenas, e com ellas cresceram, e que as não hão de deixar : e o mesmo dizem outros, poste que sejam mancebos ao tempo do baptismo, porque se acham já com aquella e lhe querem bem, porque não tiveram outra nem ao presente tem poder para a achar ; e se acertaram de vir a poder dos portuguezes, têm medo que lh’as tomem seus senhores, e elles se fiquem sem mulher; mas se lhes dão alguma mais geitosa, facilmente deixam a primeira; e assim acontece não raro que estes mesmos se ao tempo do baptismo têm tomado alguma de novo, ou algum principal lhe quer dar alguma filha ou irmã, facilmente deixam a outra, e não querem casar senão com a derradeira. E as outras ou se ficam assim, se são velhas e têm filhos, ou se casam cora outros ( como se disse ao principio ) sem muito sentimento.

 
Padre José de Anchieta
 
(Revista do Instituto.)
 

 

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