Revista do Instituto Historico e Geographico de S. Paulo/Volume 9/Restauração historica
REVISTA
S. PAULO
Restauração Historica da Villa de Santo André da Borda do Campo
I
Ao tempo em que aqui esteve na tela da discussão a individualidade historica do fundador de Santo André, alguns amigos de antiguidade e cultores da Historia Patria convieram numa excursão á vizinha villa de S. Bernardo, para o fim de tirar a limpo si eram os vestigios derradeiros da lendaria povoação de João Ramalho umas velhas ruinas alli descobertas no alto de uma collina, por detrás da estação da estrada de ferro.
Eramos uns seis companheiros [1], hospedes do Dr. José Luiz Flaquer, que mui gentilmente nos serviu de guia no exames dessas ruinas que a vegetação escondera, as quaes só por trechos se reconheciam á margem de um vallo obstruido e sob as raizes grossas das acacias e dos myrtos da capoeira alta. Por algum tempo, percorremos o matto em diversas direcções, depois de ter seguido e verificado na velha estructura da taipa o fecho de um recinto regular de menos de um hectare de superficie. Descemos ainda a um pequeno corrego onde se diz que existiu a represa que abastecia o extincto povoado e voltamos ao alto onde debalde pesquisamos, no terreno ensombrado, vestigios mais significativos, mais concludentes que infelizmente não pudemos encontrar. Dali, porém, da borda da campina que descia suave para a planicie onde corre sinuoso o Piratininga antigo, tinhamos larga compensação nos effeitos de um bello horizonte, estendendo á vista por sobre os campos que já foram, na phrase de Simão de Vasconconcellos, o paraizo da gentilidade, e na mesma direcção em que, através de um tenue nevoeiro, distinguiamos, nos contornos indecisos, ás alturas em que cresceu S. Paulo, grande e prospero, emulo victorioso de quatro seculos.
Estavamos ali, com effeito, á borda do campo, onde finda a matta e começa o prado, calcavamos ruinas cuja antiguidade se nos impunha com a força da evidencia e, comtudo, não tinhamos na alma aquella segurança nascida da logica irresistivel dos factos que nos levasse a affirmar ter sido, alli, o assento da villa de Santo André.
Duvidas bom fundadas nos assaltavam o espirito, a despeito de affirmações apoiadas no testemunho de velhos moradores que depunham pela localização do antigo povoado naquelle sitio. Dois velhos quasi centenarios, João José da Silva e Fabiana Rodrigues diziam ter ouvido de seus avós que alli tinha sido o assento da villa cuja egreja e cemiterio deviam estar no logar mesmo onde descançavamos, almoçando á sombra das arvores.
Ajuntavam a noticia de uma grande lucta dos emboabas com os indios, e falavam de um antigo aldeamento destes para o logar, boje ainda denominado — Borda do Campo.
Informavam outros que, em excavações feitas nestas ruinas, se encontraram, de envolta com fragmentos de telhas, imagens mutiladas de terra cota, vestigios que presumem da antiga egreja.
Sabiamos que, annos antes, Azevedo Marques, visitando estes logares, se deixara convencer, sem maior exame, de que a antiga e extincta povoação de João Ramalho fora construida nesta aprazivel situação, á margem direita do ribeiro Guapituba, afluente do Tamanduatehy, e sobre a collina, distante pouco mais de um kilometro para o Sul da actual estação da estrada de ferro.
Não achamos convincentes as razões, depoimentos e impressões colhidas neste logar. Sabiamos que a povoação antiga, conforme documentos dignos de fé, se edificára á margem da estrada velha, primitiva vereda dos indios, ligando Piratininga á costa do mar, e o ponto em que nos achavamos ficava apartado cerca de uma legua daquella estrada, não satisfazendo assim á condição essencial de sua locação. Demais, tradições bem vivas, mais espalhadas e não menas seguras entre o povo, no seio do qual ainda se contam familias de procedencia indigena, como os Davids, os Pecegueiros e Quiterias que guardam ainda o typo do indio, affirmavam o contrario; davam por assento da villa de João Ramalho, o logar ainda hoje conhecido por Borda do Campo, que annos antes tinhamos visitado, ao levantar a planta topographica destas paragens. [2]
Para proval-o, estudemos agora os factos á luz dos documentos existentes, com o auxilio de dados topographicos colhidos na região, com o testemunho dos moradores; mas. antes disso, vejamos, segundo a Historia, o que foi ou o que devia ter sido a villa de Santo André, como nucleo de população christã, e como o primeiro despertar da civilização neste logar, fadado para os mais arrojados commettimentos na conquista e descobrimento dos sertões occidentnes.
II
Não se sabe ao certo em que epocha João Ramalho veiu se estabelecer para os campos de Piratininga. Está, porém averiguado que, muito antes da vinda de Martim Affonso, já alguns europeus habitavam o littoral e o famoso aventureiro tinha assentado residencia nestes campos.
Sabe-se por Diogo Garcia que, em 1527, vivia, na costa de S. Vicente, um bacharel com alguns outros europeus que eram seus genros e ahi mantinham uma especie de feitoria; vendiam refresco ás naus em transito; abasteciam-nas do que havia na terra; negociavam embarcações pequenas, forneciam interpretes para os navegantes que iam ao rio da Prata; mas principalmente traficavam em escravos, contratando navios para o transporte de uma só vez de cerca de oitocentos delles para a Hespanha.[3]
O bacharel, mui provavel é que fosse mestre Cosme Fernandes, que depois foi o fundador de Iguape, e dentre os seus genros uns, parece, que eram castelhanos, e faziam o commercio na costa, entre S. Vicente e Cananéa, commercio irregular e incerto como tambem o eram, nesse tempo, as communicações com a Europa e com outros portos do Brazil. Na mesma costa de S. Vicente, no logar Tamiurú (Temiurú), visinho do bacharel, residia Antonio Rodrigues, portuguez e talvez socio e companheiro de negocios de João Ramalho, estabelecido no interior, nos campos de Piratininga, onde parece que era mais facil o mister de assaltar indios para os remetter para a feitoria como escravos.
Só isto basta para explicar a preferencia do aventureiro por um logar, já tão apartado do mar e quasi inaccessivel pela escabrosidade dos caminhos atravéz da Serra.
João Ramalho ahi viveu muitos annos antes que algum outro europeu se resolvesse a ir compartilhar de sua vida aventurosa entre os selvagens. Ligou-se intimamente a estes, tomou por mulher uma india, constituiu familia, adquiriu ascendencia e poder no seio do gentio amigo.
Quando, em 1532, Martim Affonso de Sousa sóbe aos campos de Piratininga, João Ramalho ainda era o unico homem branco alli residente. Examinando as terras que então lhe pareceram bôas, o donatario julgou, comtudo, de bom conselho não consentir no povoamento immediato desses campos, pois, seria fomentar a dispersão, provocando o enfraquecimento da colonia nascente, deixando-a mais exposta aos insultos da pirataria do lado do mar, e aos ataques do gentio do lado de terra. Prohibiu, então, a entrada de colonos para os campos; concentrou a sua gente nas ilhas littoraneas, onde havia mais segurança, e facilidade de soccorro e não concedeu seamarias senão á beira-mar, para que o povoamento do paiz fosse entrando como uma conquista systematica do littoral para o interior.
Tão salutar medida, parece, porém que por poucos annos se observou A attracção pelo desconhecido era uma força irresistivel actuando no intimo de todo o aventureiro emigrado para o Novo Mundo. Assim é que ás caçadas, ás explorações, ás simples viagens de recreio succederam, de facto, as entradas amiudadas com animo de ficar, e não poucos colonos, attrahidos pela amenidade do clima e facilidade de vida, foram aos poucos deixando o littoral e se estabeleceram ao lado de João Ramalho, acolhendo-se á sua sombra, abrindo as suas roças que logo começaram a ser o centro abastecedor de beiramar, e partilhando da sua vida de caçador de indios e de traficante de escravos.
Essa dispersão de forças não tardou a produzir os seus effeitos. Os Tamoyos, alliados dos Francezes tornavam-se cada vez mais insolentes; atacavam os estabelecimentos do littoral e assaltavam os caminhos que levavam ao campo. O perigo crescia a todo o momento e foi mister então appellar-se para a concentração como medida de salvação publica. Marcou-se prazo para que todos sem excepção descessem com as suas forças para S. Vicente, e se deu a João Ramalho, por se achar mais distante, o prazo de dous mazes para se recolher tambem. O aventureiro, porém, não obedeceu; deixou-se ficar nos seus campos, entre os seus indios, guardando as suas roças sem se importar com os perigos a que ficavam expostos os de beíramar.
Ninguem o coagiu, nem havia auctoridade com força bastante para o fazer.
A prohibição de se communicarem e commerciarem os moradores da beiramar com os de cima da Serra, nunca foi rigorosamente observada. Em 1544, D. Anna Pimentel, mulher do donatario, revogou-a. O alvará de 11 de Fevereiro desse anno veio simplesmente sanccionar os factos, porque, na verdade, as relações do campo com o littoral, obedecendo a influxes de ordem, economica, tinham augmentado sensivelmente, desde que foram prohibidas.
Em 1550, quando o Padre Leonardo Nunes, que o gentio chamou o Abarebebé, visitou os campos de Piratininga, eis como nos descreve o primeiro evangelizador desses sertões, o estado da população branca que ahi achou domiciliada:
« Aqui me disseram que no campo, 14 ou 15 leguas daqui, entre os indios, estava alguma gente christã derramada e passava-se anno sem ouvir missa e sem se confessarem e andarem em ama vida de selvagem. Vendo isto, determinei ir lá para dar remedio a estes christãos, como por me ver com estes gentios, os quaes estão mais apartados dos christãos que todas as outras capitanias. Levei commigo dous linguas, os melhores da terra, os quaes, depois se determinaram de servir a Deus, em tudo o que eu lhes mandasse, e eu o acceitei assi pela necessidade como por elles serem muito aptos para isso e de grande respeito, principalmente um delles, chamado Antonio Corrêa. E indo, na derradeira jornada, topámos um mancebo com umas cartas para mim, que me estavam esperando, por que tinham novas que eu os desejava ir vêr.
« Trabalhei muito com os christãos que achei derramados naquelle logar entre os Indios, que se tornassem ás villas entre os christãos, no qual os achei mui duros. Mas emfim acabei com elles que se ajuntassem todos em um logar e fizessem uma ermida e buscassem algum Padre que lhes dissesse missa e os confessasse. Pnzeram-no logo por obra e tomaram logo campo para egreja. Gastei dous ou tres dias com elles, confessei alguns e dei-lhes o Santissimo Sacramento. Depois disto fomos dar com os Indios ás suas aldêas, que estavam 4 ou 5 leguas d’alli, e indo, achamos uns Indios que andavam com grande pressa, fazendo o caminho por onde haviamos de passar e ficaram muito tristes por que o não tinham acabado.
« Chegando á aldêa, veiu o Principal della e me levou comsigo á sua casa e logo se encheu a casa de Indios, e os outros, que não cabiam, ficaram fóra, que trabalhavam muito por me ver.
« Considerai vós, meus Irmãos em Christo, o que minha alma sentiria, vendo tantas almas perdidas por falta de quem as soccorresse.
« Algumas praticas lhes fiz, apparelhando-os para o conhecimento da Fé, e lhes disse, pela tristeza que mostravam por me eu haver logo de tornar, que não ia sinão a vel-os e que outras muitas vezes os visitaria, si tivesse tempo.
Digitized by Google « Tambem achei ali alguns homens brancos e acabei com elles, que se tornassem christãos, e d’ali me tornei outra vez a S. Vicente o determinei de fazer uma casa em que nos recolhessemos, com algumas esmolas dos moradores, acabei para tambem poder nella recolher e ensinar os filhos dos gentios. » [4]
Como se vê dos termos desta carta, a população branca dos campos de Piratininga, em 1550, ainda até ali vivia dispersa, derramada, come expressivamente o diz o illustre predecessor de Anchieta; não havia ainda um nucleo de população regular, assim como um povoado ou arraial. Viviam abi os christãos espalhados nas suas roças, distantes uns dos outros, com o que aliás parece que se davam bem, pois que solicitados pelo Padre a que tornassem ás villas do bairamar para melhor fructo dos seus deveres religiosos e maior segurança de suas familias, se recusaram todos, mui duros que estavam de não arredar pé, com sacrificio de suas lavouras. Comtudo, convieram em se reunir em povoado, onde fizessem uma ermida, elegendo logo sitio para esta.
Daqui se couclue, portanto, que a primeira povoação de europeus nestes campos não foi obra de João Ramalho como geralmente se presume, mas do Padre Leonardo Nunos que o aconselhou e conseguio ver realizada.
Cabe, sim, a João Ramalho a precedencia no movimento povoador, não porém a iniciativa da fundação do primeiro povoado, que se denominou de Santo André, como por esse documento se prova.
Formada assim a primeira povoação desses campos, para ella vieram residir, como outros europeus, João Ramalho e os seus filhos. Attesta-o o viajante allemão Ulric Schmidel que por ali passon em 1553 de regresso do Paraguay.[5]
A povoação, como é de presumir-se, não passaria de certo de uma reunião de algumas cabanas cobertas de folba de palma, feitas de taipa de mão a modo dos indios, dispostas ao longo de unico caminho então existente, e sem nenhuma construcção de caracter duradouro, cousa então commum em todo o Brazil. A ermida ou capella não está averiguado que a tivessem edificado. Leonardo Nunes diz que tomaram logo campo para a egreja ; mas tel-a-iam iniciado realmente?
O sentimento religioso não era firme entre essa gente que tão facilmente assimilava os costumes bons e máos dos selvagens, e, em muitos casos, se fazia mais fera e doshumana do que elles. Apezar de que o Padre, insistindo com os moradores, acabou com elles que se tornassem christãos; comtudo, achou-os todos mui duros para se tornarem ás villas, e nos refere o caso de um individuo branco que se embrutecera tanto entre os indios que não entendia mais nada de religião, só entrava na egreja á força e só á força se ajoelbava diante do santissimo sacramento.
A egreja ou ermida parece que jamais se edificou pois que a de S. Paulo foi a primeira que se fez entre o gentio [6] e se os moradores de Santo André, obedecendo aos conselhos de Leonardo Nunes, buscaram algum padre que lhes dissesse missa e os confessasse, nenhum documento o prova. [7]
Que a povoação, com o predicamento de villa de Santo André em 1553, não era grande, nem de bom aspecto logo se deprehende das proprias palavras de Schmidel, que a visitou pouco mais de dous mezes depois de ser elevada á cabeça de municipio.
«Chegamos emfim, diz o viajante, a uma aldêa habitada por christãos cujo chefe se chamava João Reinmeille (Ramalho). Felizmente para nós estava elle ausente, porquanto esta aldêa pareceu-me um velhacouto de ladrões.
«Ramalho, continua o narrador, tinha ido para onde estavam outros christãos que habitavam em outra aldea chamada Vincenda (S. Vicente) a concluir um tratado com elles.
«Os indios deste logar assim como cerca de oitocentos christãos que vivem nessas aldêas, são vassallos do rei de Portugal, mas governados por João Reinmellle.
«Na aldea não encontramos senão seu filho: fomos mui bem recebidos, ainda que elle nos inspirasse mais desconfiança que os proprios indios, e, deixando este logar, rendemos graças ao céo por termos podido sahir são e salvos ».
Como se vê, a novissima villa não passava de uma aldea, com apparencias de um velhaconto de ladrões. O viajante allemão é aqui uma auctoridade insuspeita. Comquanto bem recebido no logar, não lhe achou todavia o caracter de um povo que vivesse honestamente. Não era uma dessas aldêas de provincia com a sua egreja e o seu parocho, os seus homens morigerados posto que rudes, onde logo se recebe, com a impressão de tranquillidade e socego, a segurança que dão a honestidade e a honradez.
A fama da primeira auctoridade do logar, isto é, do alcaide-mór, parece não ter sido das mais tranquillisadoras e respeitaveis, pois que o viajante se considerou feliz por encontrar ausente essa auctoridade. João Ramalho, de facto inspirava terror e seu filho, que foi quem recebeu e hospedou o viajante, ainda mais desconfiança inspirava do que os proprios selvagens. Posto que muito bem recebido por elle, Schmidel rendia graças ao céo por ter sahido com vida daquelle antro.
E’ bem facil de comprehender o que seria, n’uma sociedade incipiente e retirada da civilisação, um potentado como João Ramalho, investido de um cargo publico. Fazia-se temer de toda a gente, dictava a lei sem contraste, e tratava com as auctoridades do littoral, com o representante do donatario, como quem impunha condições. Se lh’as refusavam, rebellava-se, usava de represalias na plena certeza de que havia de acabar triumphando.
E’ o proprio Schmidel quem nol-o conta.
Ramalho considerava-se o conquistador dessas terras e com direito a governal-as. Naquella occasião refere o viajante, elle se achava em questão com os proprios portuguezes do littoral por motivo de direitos e prerogativas, mas era bem certo que elle tinha e podia dispor de mais poder do que ninguem, visto como podia pôr em campo até cinco mil indios quando da parte do rei on do donatario não se reuniriam dous mil.
Mas, voltemos a tratar de Santo André que é aqui o principal objecto do nosso estudo.
A aldêa, aliás villa e de recente data, já teria por ventura, a esse tempo, as fortificações, baluartes em que se cavalgava artilharia, egreja, cadêa e mais obras publicas necessarias a que se refere Frei Gaspar da Madre de Deus nas suas Memorias?
Salvo as fortificações, não é crivel que o tivesse: sinão, bem diversa teria sido a impressão do insuspeito viajante. As mesmas fortificações não passavam, porém, de simples estacadas, a modo dos indios, como o eram nessa épocha as de Santos e S. Vicente, a julgar-se por umas velhas gravuras hollandezas do seculo XVI. Feitas de grossos madeiros com os seus fossos ao redor, essas mesmas cercas ou estacadas, envolvendo umas tantas habitações toscamente construidas, não pouco teriam contribuido para a má impressão que a aldêa produziu no recem-chegado, aldèa miseravel, semelhando um reducto de bandidos, cujos moradores ausentes deixavam as suas palhoças fechadas por longos dias, talvez occupados com as suas lavouras, ou empenhados nas duras e repetidas expedições para saltear indios.
Egreja, cadêa e mais obras publicas só o autor das Memorias as consigna, apoiado entretanto em documentos nos quaes Pedro Taques, antes delle, só achou fundamento para affirmar a existencia de fortificações, obras aliás communissimas naquelles tempos, não só nos povoados como nas residencias isoladas, porque assim o exigiam as circumstancias, e o perigo imminente diante da gentilidade temivel pelo seu numero como pelos seus processos mysteriosos de guerra.
Não é crivel que em tres annos, que tantos contava a povoação, desde a visita do Padre Leonardo Nunes, com os fraquissimos recursos de mão de obra e de materiaes de que nessa épocha se dispunha, falta que por tantos annos adiante ainda se fazia sentir, [8] João Ramalho tivesse realizado tanta cousa.
Egreja ou ermida? se alguma ali se chegou a edificar, não podia ser senão alguma capellinha de taipa de mão, á semelhança das que hoje denominamos—Sancta Cruz; cadêa?... seria decerto um desses barbaros troncos no fundo de alguma palhoça miseravel; obras publicas?... que obras publicas haveria nessas paragens ainda mal devassadas, onde as estradas e caminhos não eram mais que as pobres veredas dos indios, invadidas pelo mato e que só se limpavam quando, na terra, se esperavam visitas de pessôas de consideração, mas em que se passavam os rios a váo, ou ás costas de um indio robusto, e ве atravessavam grandes alagadiços, extensos banhados, com as roupas erguidas e os pés descalços, como por muitos annos adiante ainda se praticava?
O autor das Memorias, decerto, equivocou-se, enriquecendo. a aldêa de Santo André com edificações que nunca existiram e que João Ramalho, o alcaide-mór, por maior que fosse o seu poder, não logrou jámais realizar.
Santo André da Borda do Campo, na verdade, nunca foi mais do que uma pobre aldeia, fadada á uma vida ephemera e sem gloria. Mal situada, exposta nos assaltos dos barbaros por se achar muito proxima das mattas, não contando com vontade da gente do littoral, e, depois da vinda dos jesuitas, que foram os melhores e mais efficazes impulsores do povoamento do paiz, não contando tambem com as sympathias destes, a villa de João Ramalho não possuia as condições essenciaes de prosperidade nesses tempos.
A sua rapida decadencia e total aniquilamento explicam-se, portanto, pelas mesmas causas que determinaram a fundação e crescimento de São Paulo, cerca de tres leguas campo a dentro.
Explorada a região e conhecida a indole dos seus habitantes, os Padres da Companhia, ao iniciar o seu apostolado no Brazil meridional, tinham que escolher com esmero e summo tacto o terreno onde a boa semente devia fructificar. Tinham verificado que em Santo André o logar não era propicio ao seu santo ministerio. João Ramalho imprudentemente se indispozera com elles logo de principio. Fez-se inimigo e perseguidor dos missionarios, pois, cedo, reconheceu nelles os adversarios mais temiveis contra o genero de negocios a que até alli se entregara em tropeços. Protectores dos indios, como sinceramente se declaravam os delegados do Padre Nobrega, não podiam nutrir a esperança de obter o apoio e protecção do mais poderoso e destemido dos traficantes de escravos.
Subindo para o campo, onde contavam com bom numero de indios amigos, os padres tinham que evitar Santo André, e se conservar longe da influencia e auctoridade do alcaide-mór; mas não tão longe que a acção reparadora delles não se fizesse sentir naquelle meio onde se tramava com mais ardor o ataque á liberdade dos indios.
São Paulo oppunha-se a Santo André da Borda do Campo como uma sentinella á vista, como os pólos oppostos de dois systemas diversos e tambem oppostos. Aquelle representava a civilização do Brazil pela redempção do selvagem; este, ao contrario, representava a conquista pelo que esta tinha de mais iniquo e oppressor, a escravidão. Um era a persuação, outro era a força. Anchieta era a brandura, Ramalho era a violencia.
Venceu a brandura, fructificou a fé, converteu-se o selvagem. Santo André desappareceu sem deixar vestigios; mas o systema que elle representava, supplantado agora, não soffre sinão um prolongado adiamento, porque em menos de um seculo resurgirá victorioso e irresistivel com os bandeirantes.
São Paulo, fundado pelos jesuitas a 25 de Janeiro de 1554, menos de um anno depois que se elevou á villa a povoação de Santo André, tornou-se logo o refugio do indio como dos christãos, e rapidamente prosperou, bafejado pelas auctoridades, pelo povo, e, mais que tudo, pela extrema solicitude dos seus heroicos fundadores.
Seis annos mais tarde, actuando nestes campos como um centro de attracção que o sentimento religioso, a segurança e a justiça tornaram irresistivel, São Paulo impunha-se, de facto, como a cabeça do municipio serrano. O deslocamento dos interesses maiores da sociedade, de Santo André para a nova povoação fundada pelos Padres da Companhia, era facto tão universalmente reconhecido que a mudança da villa para São Paulo é apenas uma sancção desse facto que se realiza com aprazimento de quasi todos, não sendo mister recorrer-se aos bons officios das auctoridades, para se obter como favor feito aos padres aquillo que pela força dos acontecimentos naturalmente se explicava.
Os mais antigos moradores christãos de Piratininga tinham-se transferido quasi todos para São Paulo, e eram estes os que agora se empenhavam para que a séde da villa tambem se transferisse. Conseguida de Mem de Sá a mudança da séde, solicitam da rainha regente d. Catharina a confirmação, justificando a medida tomada pelo governador nestes termos: «E assim mandou que a villa de Santo André, onde antes estavamos, se passasse para junto da casa de São Paulo, que é dos Padres de Jesus, porque nós todos lhe pedimos por uma petição, assim por ser logar mais forte e mais defensavel e mais seguro assim dos contrarios como dos nossos indios, como por outras muitas cousas que a elle e a nós moveram». [9]
Não foi mister demolir-se a villa de Santo André, pela simples razão da mudança da séde, como infundadamente affirmam alguns. A povoação nunca foi consideravel, como o dissemos. Na verdade, não passava de uma insignincante aldeia. O seu desapparecimento, dadas as condições anteriormente citadas de posição e de população, era inevitavel, uma vez mudada para São Paulo a séde do governo municipal. Por esse tempo já não havia em Santo André mais que uns trinta colonos europeus, como na alludida carta se refere.
A demolição não foi ordenada, nem se tornou necessaria. Basta fazer-se um parallelo entre as duas povoações visinhas, cotejando as bôas e más condições de cada uma, para se ficar compenetrado de que a mudança da séde importava n’um real melhoramento, n’um assignalado progresso para a população serrana, era, emfim, um facto que se impunha com a vehemencia das cousas inevitaveis. Santo André, edificada á sahida da mata, era exposta aos ataques dos individuos; S. Paulo, ao contrario, situada mais campo a dentro, e a cavalleiro de um espigão de encostas ingremes, protegida por dous fossos naturaes como o Tamanduatehy e o Anhangabahú, era seguro e inspirava confiança. Santo André representava tradições de guerra com os selvagens, salteados de longa data e redusidos ao captiveiro, era de facto um pomo de discordia, e muitas vezes o alvo da vindicta dos selvagens offendidos; S. Paulo, ao contrario, fundara-se com os indios, isto é, com o auxilio delles, para lhes servir de asylo, protecção, de um centro de justiça, devia, por isso mesmo, ser o alvo das sympathias e da vigilancia do gentio. Santo André não logrou jamais obter a boa concordia com as auctoridades do littoral, as quaes não raro lhe levantavam tropeços que o genio de Ramalho, arrogante, não sabia evitar. S. Paulo, ao contrario, recebeu sempre das auctoridades e do governador geral do Brazil todo o bafejo. Santo André nunca teve egreja, não conseguiu jamais ter um parocho para o seu serviço religioso, cousa indispensavel naquelles tempos. S. Paulo, pelo contrario formou-se sob este influxo, e construiu logo egreja, em torno da qual a povoação se foi desenvolvendo, sob a direcção beneficente dos Padres. Assim, portanto, á paz, á segurança, ao bafejo das auctoridades, á sympathia do gentio, á influencia religiosa deve S. Paulo a sua ascendencia e preferencia sobre a villa do alcaide-mór da Borda do Campo, e só isso basta para explicar a decadencia de Santo André que desappareceu sem deixar vestigios.
III
Foi devido a tão completo aniquilamento, em que até as proprias ruinas pereceram, que se formou a crença da demolição da villa do alcaide-mór da Borda do Campо, que se apagou na tradição a memoria do sitio em que existiu nestes campos a primeira povoação de europeus, e que deixou na Historia este problema geographico que ora tentamos resolver. E, de facto é este problema de solução possível, á vista dos dados historicos existentes, dos caracteres topographicos que facilmente se reconhecem, e das informações colhidas no local, as quaes, submetidas a um exame critico, podem conduzir a resultados concordes e fidedignos.
E’ geralmente sabido que a povoação, que depois foi villa de Santo André, se edificou á sahida da matta, isto é, á borda do Campo, e na margem da estrada ou caminho primitivo que descia de Piratininga para o mar. A orla da matta e o caminho são, portanto, duas linhas irregulares embora mas que se cortam, determinando um ponto, junto ao qual devia estar o logar da povoação de Santo André.
Vamos procurar esse ponto, pela fixação ou determinação das duas linhas referidas--a orla da matta e o caminho.
Ora, o limite entre a matta e o campo, isto é a orla da matta é uma linha natural, cheia de inflexões e sinuosidades, mas indicada por phenomenos physicos invariaveis e que se pode assignalar no terreno, ainda quando pela acção dos homens a mór parte da flroresta primitiva tenha desapparecida. O caminho outr’ora aberto pelos selvagens, ainda que delle se encontrem vestigios authenticos, é sabido que tinha tambem pontos obrigados, ainda hoje reconhecidos e que o homem civilizado, tomando conta da terra, nada mais fez que melhoral-o, e se em alguma parte se desviou delle, jamais o desprezou inteiramente porque, defacto, reconheceu ser a sua directriz a melhor, attento ao habito instinctivo do selvangem em bem arrumar as suas vias de communicação.
Quem visita essa parte dos campos de Piratininga, visinhando com a actual villa S. Bernardo, observa logo que as mattas são ahi uma vestimenta das elevações que culminam na região. Emquanto os campos louros se desdobram pelo dorso das collinas e dos espigões mais baixos e um tanto largos, interpostos nos sulcos pouco profundos dos ribeiros por onde a vegetação mais alta ainda se afoita a penetrar nos prados humidos la embaixo, cá em cima, os montes, dispostos como uma pequena cordilheira parallela a que mais ao sul e pouco distante dá para ver o mar e por isso se chamou na linguagem do gentio Paranapiacaba, montes, que são o divisor das aguas do Jeribatiba ou rio Grande de Pinheiro, das do Tamanduatehy ou Piratininga de outr’ora, se cobrem de uma vegetação mais densa e vigorosa, com os troncos vestidos de plantas parasitas, caracteristicas dos ares humidos.
A matta desce dahi das cumiadas ao sopé dos morros, projectando-se em franjas mais ou menos largas pelos contrafortes mais altos e mais proximos e vem ainda cobrir com o seu manto impenetravel as fontes donde promanam os ribeiros que, fluindo ao sul, vão ao Jeribatiba, e, fluindo pela opposta vertente, vão ao Tamanduatehy cujo valle se abre ao septentrião, assignalando-se ao longe por uma planicie loura e continua.
Lançando-se a vista para a carta geographica da região, (Vide planta annexa) [10], na parte mais visinha da actual villa de S. Bernardo, como dissemos, observa-se que, na altitude de 800 metros sobre o mar, a curva de nivel dessa altitude, assignalando mui approximadamente o limite entre o campo e a matta, corre ahí sinuosa e irregular, avançando para o norte com os espigões altos que se projectam nesse sentido, e inflectindo-se para o sul sempre que tem a transpor algum dos afluentes do Tamanduatehy. Essa linha sinuosa, cujo seio mais fundo se abre aqui no rio dos Meninos, galho mais importante do mesmo Tamanduatehy, é o que se pode chamar a borda do campo, e no ponto em que ella corta o dito rio dos Meninos é tambem o mais meridional della, isto é, representa a parte do campo que avança ou penetra na matta mais para o lado do mar. De sorte que, deixando-se S. Paulo para se buscar S. Vicente, fazendo-se caminho pelo campo, o mais longo trajecto livre que se pode encontrar, nessa direcção é o que conduz a esse ponto no rio dos Meninos, a que acima nos referimos. Em outros termos, para quem vem do mar, galgando a serra e atravessando as mattas, a parte do campo de Piratininga mais proxima e mais facil de attingir é exactamente essa que fica no valle do rio dos Meninos, onde a borda do campo desce mais para o sul.
Vejamos agora, a outra linha, isto é, o traçado do primitivo caminho que descia de Piratininga para o mar.
A directriz geral do caminho entre Piratininga e S. Vicente corre a rumo de Sul-sueste. A vereda dos indios seguia essa directriz com uma precisão admiravel, e tão sómente della se apartava nos chamados pontos obrigados, como sejam gargantas das serras, ou porto de mar a attingir. Esses pontos obrigados, que os indios sabiam procurar como ninguem, são : o fundo do campo a que acima nos referimos, a garganta do Botujurá nas cabeceiras do mencionado rio dos Meninos, a garganta do Perequê na serra de Paranapiacaba, e o porto ou apeaçaba onde se deviam tomar as canôas para se alcançar as praias do mar.
De feito, o caminho primitivo, a partir de S. Vicente, seguia por mar até o porto, hoje conhecido por Peaçaguéra (porto velho) e dahi por terra, fraldeando os morros, procurando o enxuto pela orla dos mangues e base da serra, dirigia-se para a garganta do Perequê ; galgava a serra de Paranapiacaba por essa garganta, e, uma vez no alto, fazia rumo para a segunda corda de morros, onde servia de balisa o pico do Ponto Alto, junto do qual se acha a notavel garganta do Botujurú que quer dizer boca do vento, na linguagem dos indios, pois que, por ahi penetra no horizonte de Piratininga e nos seus campos o vento frio o dominante do Sueste. Do Botujurú descia o caminho pelo valle do rio dos Meninos a procurar o campo mais proximo, e desse ponto, pelo campo a dentro fazia rumo quasi directo para o logar onde depois se construiu S. Paulo, e existiu outr’ora uma aldêa do gentio. Esse caminho, com pouca differença, ainda é hoje trilhado, e em mais de um logar se reconhece no meio da matta os vestigios ainda bem visiveis dos trechos que já foram abandonados ha mais annos. [11]
A segunda linha ou o caminho primitivo fica pois perfeitamente determinada pelo seguintes pontos principaes: S. Paulo o fundo do campo, no valle do rio dos Meninos, a garganta do Botujurú, a garganta do Perequê, a Peaçaguéra e S. Vicente. (Vide planta).
Ora, a intersecção das duas linhas, borda do campo ou orla da mata e caminho primitivo aberto pelo gentio determinam um ponto que hoje fica a pouco mais de kilometro para o Noroeste da actual villa de S. Bernardo. E’ ahi que o caminho trazido do mar, ao sabir da mata, entrava no campo. E’ ahi exactamente o logar de um antigo povoado, desapparecido, ha cerca de vinte annos, que era conhecido pelo nome de Borda do campo, nome unico nesta redondeza, como nol-o informam os proporios moradores de S. Bernardo.
Ahi, de facto, devia ter sido o assento da villa de Santo André de João Ramalho, tambem conhecida por Santo André da Borda do Campo. Não poucas são as razões a favor desta conclusão.
O local está situado á sahida da mata ; fica bem na directriz entre S. Paulo e S. Vicente, e portanto sobre o caminho do mar ; conserva ainda o seu appellido primitivo ; os seus ultimos moradores de que ha memoria, ainda bem viva em S. Bernardo, tinham o typo do indio e delle descendiam.
O logar fica, com effeito, no meio do triangulo cujos vertices são occupados pela villa de S. Bernardo, pela fazenda de S. Bernardo velho que foi da Ordem de S. Bento e onde já houve uma capella e a povoação da Piraporinha, correndo nelle um pequeno corrego que desce pelo campo a ramo de norte, banha a sede da referida fazenda de S. Bernardo Velho ou capella e entra no rio dos Meninos pela margem esquerda depois de um curso de pouco mais de meia legua. Isto confirma o que diz Frei Gaspar de Madre de Deus, nas suas Memorias quando refere que a villa de João Ramalho ficava na referida fazenda, pois que esta tinha de facto a sua sede e capella mais embaixo, proximo do rio dos Meninos e a povoação da Borda do Campo existiu, muitos annos ante, nas cabeceiras do corrego cerca de meia legua para cima, e perto do actual cemiterio de S. Bernardo. (Vide planta annexa.)
Não têm aqui cabimento as duvidas do dr. Candido Mendes a proposito do que diz Frei Gaspar quanto ao assento da Villa de Santo André, estranhando a troca de invocação, e não julgando provavel a substituição do nome de S. Bernardo ao daquelle martyr e apostolo. [12] E’ preciso, porém, observar que os dois pontos, a fazenda e o povoado, ficavam distantes um do ontro cerca de meia legua; que a capella da fazenda, fundada muito depois, podia trazer a invocação de S. Bernardo sem prejuizo do orago da povoação, ou villa extincta havia mais de dous seculos. Com o andar dos annos a fazenda prosperou, tornou-se mesmo um pouso obrigado do caminho do mar, emquanto a velha povoação da Borda do Campo decahia até desapparecer. A invocação da nova capella propalou-se, tornou-se conhecida, emquanto na memoria do povo se perdia de todo a da antiquissima povoação que nenhum velho monumento relembrava.
Que o logar ainda hoje conhecido por Borda do Campo é verdadeiramente o assento da antiga villa de Santo André, ainda ha para o corroborar o argumento da distancia a S. Paulo indicada nos mais antigos documentos. Eis o que diz o Padre Anchieta na Informação do Brazil e de suas capitanias [13], referindo- se a S. Paulo de Piratininga: «Esta villa antigamente era da invocação de Santo André e estava tres leguas mais para o mar, na borda e estrada do Campo, e no anno de 60 por mandado do governo de Men de Sá se mudou a Piratininga, porque não tinham cura e somente dos Padres da Companhia era visitada e e sacramentada, assim os Portuguezes como os Indios seus escravos, como nem ainda têm outro cura senão os da Companhia que lhe ministram todos os sacramentos por caridade; onde temos casa e egreja da conversão de S. Paulo, porque em tal dia se disse a primeira missa naquella terra n’uma pobre casinha, e em Piratininga, como acima se disse, se começou de proposito a conversão do Brazil, sendo esta a primeira egreja que se fez entre o gentio.»
Neste precioso trecho se diz pois que Santo André ficava tres leguas de Piratininga (S. Paulo) mais para o mar, distancia que concorda precisamente com a que hoje se acha de S. Paulo ao logar ainda conhecido por Borda do Campo, e se confirma tambem que em Santo André não havia egreja, pois que a de S. Paulo foi a primeira que se fez entre o gentio; tambem não havia parocho, sendo o serviço religioso ali feito por caridade pelos Padres da Companhia.
Na mesma Informação, Anchieta fixa em 10 leguas a distancia de S. Paulo á povoação do mar de S. Vicente, e n’uma das suas cartas [14] diz que estava S. Paulo situado no interior trinta milhas.
Os dados de Anchieta se confirmam boje pelos estudos realisados na região e bem demonstram como elle era exacto nas suas estimativas, elle que tantas vezes percorrera estes caminhos e tão attentadamente estudava a região na qual por tantos annos permaneceu.
Frei Gaspar da Madre de Deus que, decerto, ainda conheceu a antiga e decadente povoação da Borda do Campo, diz que esta ficava cousa de tres leguas distante do collegio (S. Paulo).
Santo André, estava, portanto, a tres leguas de S. Paulo e a sete de S. Vicente, distancias estas que se verificam hoje para o logar a que se dá, nas visinhanças da Villa de S. Bernardo, o nome de Borda do Campo.
Schmidel, na sua citada narrativa, confirma a mesma distancia de S. André para S. Vicente, dando-lhe vinte milhas de extensão, ou cerca de sete leguas, o que confirma os dados da Informação de Anchieta.
O assento da primitiva e ephemera villa de Santo André, segundo os documentos e as condições de topographia do logar, já porque ficava á sahida da matta, já por estar á margem do antigo caminho do mar que foi primeiro aberto pelo gentio, já pelas distancias a S. Paulo e a S. Vicente, e ainda porque uma velha tradição o confirma, é, portanto, o mesmo logar hoje chamado Borda do Campo, unico assim denominado em toda essa redondeza, distante da actual villa de S. Bernardo pouco mais de kilometro para o Noroeste, no pequeno valle para o qual se desce, logo após o cemiterio, e onde existe um velho tanque, a cerca de meio kilometro aquem da encruzilhada da Piraporinha
As ruinas, por nós examinadas a 17 de Julho, ficam distantes desse logar—Borda do Campo, 5 kilometros em recta para o Nordeste, ou cerca de uma legua pelos caminhos ordinarios; estão fóra da directriz geral do caminho do mar, n’um ponto onde a matta serrana mais se alarga, restringindo o campo. Estas ruinas não podem ser as da villa de Santo André, por que não preencham os requisitos apontados nos velhos documentos. E’ possivel que alli tenha existido outrora alguma fazenda, como tantas houve nesse valle do Tamanduatehy, na orla do campo, explorando a pastaria, a criação do gado, o frete para a região do beiramar, o que por mais de tres seculos constituiu o meio de vida das mais importantes familias, nos campos de Piratininga.
Tal foi a impressão que nos ficou do exame destas ruinas esquecidas á sombra dos myrtos e das acacias, velhas taipas, cuja antiguidade ninguem contesta, mas que certamente não foram as que construiu o celebre alcaide-mór, ao lançar os fundamentos da sua villa de Santo André.
S. Paulo, 10 de Agosto de 1903.
Theodoro Sampaio.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
- ↑ A 17 de Julho de 1902 estavamos de visita ás ruinas os Drs. João Mendes de Almeida Junior, José Luiz de Almeida Nogueira, Eugenio Alberto Franco, Horacio de Carvalho, José Luiz Flaquer, seu irmão, eu e mais outros cavalheiros.
- ↑ O auctor, durante cerca de cinco annos, de 1886 1890, como topographo chefe da Commissão Geographica de S. Paulo, sob a direcção do Dr. Orville Derhy. fez-a triangulação e organizou planta de grande extensão do territorio do Estado, então Provincia de S. Paulo.
- ↑ Carta de Diogo Garcia, na Revista do Instituto Historico e Geographico Brazilairo, Vol. 35.º pag. 6.
- ↑ Carta escripta de S. Vicente, a 24 de Agosto de 1550, pelo Padre Leonardo Naues, S, J.
- ↑ Ulrio Schmidel— «Historia verdadeira de uma viagem curiosa na America ou Novo mundo, pelo Brazil e Rio da Prata, desde o anno de 1534 a 1554», publicada pela primeira vez em Frankfort sobre a Meno em 1507.
- ↑ Informações e Fragmentos Historicos do Padre Joseph de Anchieta (1584—1688).
- ↑ Pedro Taques, na sua Historia da Capitania de S, Vicente, refere que a villa de Santo André foi fortificada com trincheira e quatro baluartes dentro, em que cavalgaram artilharia, obra feita á custa de João Ramalho, Frei Gaspar, nas suas Memorias diz que o alcaide-mór não só construio trincheira a baluartes como fez a sua custa egreja, cadêa e maie obras publicas necessarias, apoiando-se nos mesmos documentos citados por Pedro Taques (Arch. da Camara de S. Paulo—Caderno I, da Villa de Santo André, tit. 1553, de pag. I até II).
- ↑ Prova disso é a velha egreja do Collegio de S. Paulo de que o autor dirigiu a demolição em 1896, depois das grandes chuvas que a fizeram desabar. Essa obra tinha sido refeita e concertada em diversas épochas. A natureza do material ahi empregado, a qualidade e o typo da mão d’obra demonstravam não só pobresa com difficuldade de de o conseguir. A pedra vinha de Santos, a cal era de marisco e vinha tambem do littoral, as ferragens eram importadas. Só a telha, o adobe e a madeira eram do logar.
- ↑ Carta de Jorge Moreira e Joannes Alves, oficiaes da Camara de São Paulo, de 20 de Maio de 1581.
- ↑ Veja-se tambem a carta da Commissão Geographica e Geologica de S. Paulo (Folha S. Paulo), edição preliminar de 1880.
- ↑ Attesta-o a sr. João Baptista de Oliveira (João Teco) natural e morador em S. Bernardo, grande conhecedor dessas tarrras quasi deshabitadas entre o campo e o mar. O sr. Lima declara ter visto em mais de um ponto os vestigios do velho caminho dos indi:os, o qual passava no Perequé : approximava-se do Zanxalá, passava o rio Grande na parte actual e entrava na garganta de Botujarú.
- ↑ Candido Mendes — Notas para a Historia Patria—«Os primeiros povoadores. Quem era o bacharel de Cananéa?»—Revista do Instituto Historico Vol. XL 2.ª parte, pag 163.
- ↑ Informações a fragmentos historicos do Padre Joseph de Anchieta. S. J. (1584 --1588), nos Materiaes e Achêgas para a Historia e Geographia do Brazil, publicados por ordem do Ministerio da Fazenda sob a direcção de J. Capistrano de Abreu. A, do Valle Cabral e J. B. da Silveira Caldeira—Rie-1880.
- ↑ Carta fazendo a discripção das innumeras cousas naturaes que se encontram na provincia de S. Vicente—nas Cartas Ineditas de Anchieta publicadas pelo Institato Hist. de B. Paulo, por occasião do 4.º Contenario do descobrimento do Brazil.