Últimas Páginas (1912)/S. Christovam/I
Um dia, numa floresta, ao entardecer, quando por sob as frondes ressoavam as buzinas dos porqueiros, e lentamente na copa alta dos carvalhos se calavam as gralhas, um lenhador, um servo, de surrão de estamenha, que rijamente trabalhara no souto desde o cantar da calhandra, prendeu a machada ao cinto de couro, e, com a sua égua carregada de lenha, recolheu, pelos caminhos da aldeia, ao castelo do seu Senhor.
Diante de cada cruz pregada nos troncos da mata, tirava o seu barrete de pele de coelho, rezava uma ave-maria. Ao passar na lagoa, mais reluzente, sob a amarelidão da tarde entre os seus altos canaviais, que uma moeda de ouro nova, deixou um molho de carqueja e de achas para o ermita, que ali erguera a sua choça de rama. E adiante, num pinheiral, apesar de já luzir no alto a estrelinha da tarde, e o bom trabalhador ter fome, parou até encher o saco de uma velhinha que, tremendo, e arrimada a um bordão, apanhava agulhas e pinhas. A velha murmurou: “Deus te dê alegria em tua casa!”
Longamente ainda, ora por caminhos claros que soavam como lajes, ora sob a ramaria alta, por veredas fofas de musgo, tilintavam no silêncio e na penumbra os guizos da égua. E a noite cerrava-se, quando para além de um ponte de tabuado que tremia sobre uma torrente, seca por aquele lento agosto, o povoado apareceu entre o arvoredo do vale, com a capela branca e toda nova que o Senhor do castelo andava erguendo a S. Cosme.
O lenhador, com a sua égua, meteu por uma longa alameda de faias, atrás de um carro que chiava lentamente, carregado de mato. A estacada, que outrora cercava a aldeia, apodrecera sob os sóis, sob as chuvas, ao abandono durante longos e fartos anos de paz: e as cabanas repousavam entre os pomares, em segurança e fartura. Dos tetos, bem cobertos de colmo, seguros por lascas de lousa, subia o fumo lento e cheiroso das pinhas e agulhas ardendo com abundância nas lareiras. Em todas as cortes grunhiam porcos. Pelas quelhas mais escuras, as raparigas passavam para os serões, sem temor, com a sua roca à cintura. Por trás dos muros de adobe, morria o murmúrio dormente dos terços e das coroas realizadas em coro, nas contas. Raramente um rafeiro latia por trás da cancela ou das sebes. No adro, o forno senhorial ainda ardia, tanta era a fartura do pão a cozer. E junto da fonte toldada pelas ramagens de um olmeiro, no banco de pedra onde aos domingos os velhos vinham julgar os pleitos de gados ou de águas, os dois arqueiros do castelo, que todas as noites rondavam a aldeia, dormiam sem cuidados, como frades, com os seus arcos caídos no chão.
Lentamente, ao rumor lento dos guizos, o bom lenhador e sua égua passaram, ao fim do povoado, a alta taberna do Galo Preto, que estendia através da estrada a sua comprida vara enfeitada de louro. Dois romeiros, com vieiras na murça de burel, bebiam à porta por grossos pichéis de estanho. Dentro um pobre menestrel, de longa guedelha caída sobre o gibão em farrapos, tangia a sua viola de três cordas: e um frade mendicante com a sacola entre os joelhos, um caldeireiro com os tachos de latão e a ferramenta pousada ao lado no chão de terra negra, jogavam dados sobre um banco, na penumbra das grossas pipas, que tinham todas uma cruz branca, para que os maus espíritos não azedassem o vinho.
O bom lenhador apressava sua égua: e bem depressa, do alto de um cerro coberto de azinheiras, avistou embaixo o rio, o largo rio escuro que corria, mudamente, sob os quatro arcos de uma velha ponte romana, que tinha ao meio uma capelinha nova, onde palidamente, na névoa úmida, bruxuleava uma lâmpada. Para além, na outra margem, era uma longa colina suava, onde se erguia, acompanhado de arvoredos e cercado de muralhas como uma cidadela, um mosteiro rico de Domínicos.
Mas, descendo o cerro, o caminho estreito, por onde, sob a estrelada mudez da noite, iam tilintando os guizos da égua, corria fundo e negro entre altos barrancos. E como aí, por vezes, de noite, aparecia um estranho pastor, de cabelos cor de fogo, e seguido por dois lobos familiares, o bom lenhador murmurou, voltado para o santo lugar onde nasce a estrelinha d'alva, o nome do anjo Gabriel.
Depois, sem temor, atravessou o pinheiral. Já então trilhava as terras do solar do seu Senhor. Vastos pastios de gado, campos onde se fizera a ceifa, desciam até o rio, que um choupal bordava, escuro e cheio e rouxinóis. E sobre um forte outeiro, logo o Castelo apareceu, negro, formidável, com altas muralhas, os grandes cata-ventos em forma de dragões e de aves heráldicas no cimo de cada torre, e, na mais alta, a chama clara do seu alto farol.
Uma calçada de grossas lajes, orlada de faias, conduzia ao terreiro, para onde abria, sob a torre de menagem, a estreita porta chapeada de ferro e a ponte levadiça, que sempre descida, naqueles doces anos de paz, tinha as cadeias de ferro enferrujadas. De um lado do terreiro havia um pequeno alpendre, coberto de rama, onde se vendia, à vasilha, o bom vinho branco das vinhas senhoriais. Do outro lado, negrejavam os grossos barrotes das forcas patibulares. Um velho olmo assombreava o banco de pedra, onde, pelas tardes de verão, o Senhor vinha julgar os delitos, receber vassalagens, ou marcar as portagens devidas pelos mercadores que, com longas récuas de machos carregados, passavam por dentro das suas terras. Nenhuma claridade saía das janelas das torres, mais esguias que fendas. As rãs coaxavam na água negra dos fossos.
O bom lenhador costeou as compridas muralhas, onde por vezes uma mancha mais clara na pedra negra era como uma cicatriz de batalha numa face requeimada; e passando pela alta cancela de uma sebe, que ao longe se perdia nos prados escuros, penetrou por uma estreita poterna, aberta na muralha como uma fenda abobadada, e guardada por um cão enorme, cuja corrente de ferro arrastava na lajes.
Dentro, no vasto recinto murado, para além de um poço de bordas baixas, encimado por um pombal, a casa senhorial erguia a sua fachada simples e severa, de onde saía, através dos vidros miúdos encaixilhados em chumbo, a claridade pálida dos brandões da sala, ao lado da luz mais vermelha das cozinhas. Um torreão redondo, com balcão, erguia a uma esquina o seu agudo teto de escamas de lousa, encimado por um vasto cata-vento em forma de bandeira desdobrada. Aos cantos da casa, esguios dragões alados, voltavam para o pátio as goelas escancaradas, por onde as chuvas se escoavam nos regueiros da cisterna. E a lanterna de um servo, que passava sobre o terraço, alumiava grossas filas de abóboras pousadas no parapeito, secando ao sol.
O bom lenhador descarregou a égua na tercena de lenha. Depois, tirando o seu barrete de pele de coelho, empurrou a grossa porta da cozinha, armada de puas de ferro. Sob a chaminé, enfeitada de réstias de cebola e de ramos de louro seco, tão vasta que abrigava, de cada lado da lareira, um longo banco de carvalho. Uma chama clara de troncos, ardendo sobre brasido, alumiava as paredes caiadas, onde pendiam de ganchos de ferro odres de vinho, caldeirões reluzentes, e os sacos de especiarias. Com o seu longo avental de couro, um barrete de couro na cabeça raspada, o mestre cortava sobre um cepo imenso de pau, um anho esfolado. Um servente, de braços nus, regava de molho, com uma longa colher de ferro, as grossas peças de carne que assavam nos espetos, mais longos que lanças de guerra. Dois lebréus brancos enroscados dormiam diante do lume. E rente do muro, sentados em tripeças, já os moços das abegoarias, os pastores, os cordoeiros, esperavam a ceia, calados, com os seus gorros na mão.
Mas um pajem, de longos cabelos encaracolados, e trazendo um jarro lavrado, ergueu ao fundo a grossa cortina de estamenha, que tapava uma imensa porta em arco, ornada com duas cabeças de lobos. E o bom lenhador dobrou humildemente o joelho, entrevendo para além, já alumiada para a ceia, por tochas de cera, a sala senhorial: a vasta mesa atapetada de ervas frescas; as duas lanças transversais por cima, suspensas do teto por correntes de ferro, carregadas de grossos pães de sêmea; a alta cadeira de espaldar, no topo, encimada por um alto brasão, tendo ao lado um poleiro, onde dormiam dois falcões; a imensa chaminé de pedra, ao fundo, com figuras em relevo que agitavam armas. Todos os servos se tinham erguido. E quase imediatamente, arrastando os seus sapatos de pano amarelo, o despenseiro apareceu, calvo e gordo, com o seu molho de chaves. Era ele que distribuía a ração aos pastores, aos cordoeiros, aos tosquiadores, aos forneiros, e aos outros servos do domínio que não ceavam na cozinha do solar; e bem depressa o bom lenhador recebeu no seu saco de estopa o pão de sêmea, o pichel de vinho, e a posta de carne salgada, devida nos dias de grande corte.
De novo o bom lenhador empurrou, sem ruído e humildemente a porta da cozinha. Passou a poterna da muralha, que abria para os jardins e para o jogo da bola. Atravessou a rua de limoeiros que dividia os jardins e o pomar, onde docemente cantavam na sombra os repuxos e a água das regas; ladeou a casa do cabanal e a eira, alvejando, toda caiada de fresco, sob a claridade das estrelas; e passando entre abegoarias e a liça dos pajens, que desenrolava entre mastros enfeitados de bandeirolas a sua pista areada de saibro, saiu por uma porta da alta estacada, que circundava a quinta senhorial. Para além eram vastos prados, pastagens descendo até ao rio, onde uma larga avenida de olmos abrigava a cordoaria do castelo. Um outro cerrado de sebe espinhosa cercava estas fartas dependências rurais, defendidas ainda por armadilhas para os lobos, valas erriçadas de puas, e pequenas torres de adobe onde ardia uma lanterna.
O bom lenhador passou esta sebe, e meteu pelas azinhagas, a caminho da sua cabana, aninhada entre pinheiros e faias à orla da floresta, que, desde os coutos onde todo o dia trabalhava, vinha pelo interior das terras vestindo vale e monte. Por entre os troncos dos pinheiros mansos, o largo rio alvejava embaixo à claridade das estrelas. Os pirilampos faiscavam na ponta das sebes. Um aroma de madressilva adoçava o ar.
O bom lenhador atravessou, sobre uma ponte feita de troncos, um riacho que saltava entre rochas, onde os pajens da castelania vinham pescar trutas. Um rouxinol cantava embaixo entre a ramaria dos choupos. Adiante havia uma cruz de pedra coberta de heras, que tinha um braço partido. Piedosamente o bom lenhador tirou o seu barrete de pele de coelho. O seu coração simples, nessa noite, sentia como um contentamento desacostumado. Ouvindo o sino do mosteiro, que nas colinas além do rio tocava a Vésperas, murmurou uma salve-rainha, com uma devoção maior, certo de que a Virgem o escutava, debruçada do Céu, toucada de todas aquelas estrelas que rebrilhavam mais que o ouro. Já, a distância, sob o céu pálido, se arredondavam os cimos dos arvoredos, onde se escondia a sua cabana. A mulher, a boa companheira, esperava por ele fiando à lareira. Estugou o passo e, subitamente, da sombra de um chorão debruçado à beira do caminho, surgiu um moço de olhos brilhantes como lumes, coberto com uma túnica branca, encostado a uma vara branca, que parou diante dele, e disse sorrindo:
— Entra contente na tua morada, que teu filho há de ser um grande santo!
E subitamente desapareceu. Um aroma vivo, como de incenso misturado a cravos, passou de leve no ar. E as relvas altas do prado, ondeavam, dobradas, como se as roçasse um manto de seda fina.
O bom lenhador ficara imóvel, tremendo, na sombra que se adensou, mais cerrada, sob as ramagens das faias. E mal compreendia a quem tão docemente falara aquele moço, de olhos mais claros que lumes de altar. A sua boa companheira não lhe dera ainda um filho naqueles longos anos, tão serenamente passados, desde a manhã de Natal em que por sobre a neve dura brilhando ao sol, ao fino som da rabeca que o menestrel tangia, coroada de rosas, ele a trouxera à cabana construída por suas mãos, com as madeira por suas mãos rachada. Como poderia pois, no seu lar que nenhum riso de criança alegrava, crescer, para sua glória, um grande santo?... Arrepiado, penetrou por sob a ramaria, espreitando, escutando, na esperança e no terror de surpreender ainda uma claridade, um rumor daquele mensageiro estranho, que vestia de branco como os anjos. Todo o bosque estava mudo e ermo. Então entrou na sua alma simples um grande medo de todos os seres invisíveis que, vindos de Céu, ou vindos do Inferno, de repente surgem nos caminhos escuros. Começou a correr por uma estreita azinhaga até aos castanheiros que abrigavam a sua cabana. Uma fenda de luz saía da porta, entreaberta à frescura doce da noite. O rafeiro que o aguardava, com sua coleira eriçada de pregos, latiu alegremente. Entrou, limpando na face o suor que o alagava.
Sentada à lareira numa tripeça, a sua boa companheira esperava fiando. A panela de ferro fervia, suspensa por uma corrente sobre o lume. A um canto da arca, as malgas vidradas, as canecas de estanho reluziam bem limpas; sobre a palhoça do catre, o lençol de estopa era branco e fresco. Todo o dia a boa companheira lidara para o asseio do seu lar. O lenhador pendurou junto à chaminé o seu machado, e, nem à ceia, nem deitado junto dela no catre, revelou à mulher o encontro com aquele moço de olhos resplandecentes. Receava que ela, tão séria e justa, repreendesse o seu orgulho. Por que mandaria Deus um anjo, com tão maravilhoso recado, a um rude servo, de saião de estamenha? Decerto não fora a ele que o moço, brilhante de claridade, anunciava a santidade de um filho.... Se Deus os tivesse escolhido para tão grande ventura, não seria por ele, rude como os troncos da sua mata, mas pela sua boa companheira, tão séria, diligente no trabalho, clara de alma, compassiva aos mais pobres, sempre alegre e tão leal! Nela e não nele, estavam decerto os méritos divinos.
E enquanto ela, direita, robusta, e corada como uma maçã, enchia as malgas da ceia, o lenhador sentia abrir-se no seu coração, como uma flor que sob o orvalho reflorescesse, uma ternura doce e melhor por aquela que, em tantos anos tornara a sua pobre cabana lugar mais apetecível que a casa rica de um senescal ou o castelo do seu Senhor.