Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Evocações/Segunda evocação
Oh! quem és tu, que assim n′alma me vibras
Olhar ardente e vivo,
E com sorrir lascivo
Do peito meu vens abalar as fibras?...
Em crespas ondas cahe-te nas espaldas
Negra madeixa em cachos abundantes,
Bem como da montanha pelas faldas
A coma ondula ás selvas susurrantes.
Gentil como Moema,
Alças vaidosa o collo teu moreno,
Como garbosa ema,
Que ufana vaga pelo campo ameno.
Oh! vem! — bem te conheço; — és tu, que outr′ora
Febre fatal nas veias me ateaste;
E com teus risos, tua voz canora,
Humilde ás tuas plantas me arrojaste;
E acodes hoje aos sons de minha lyra,
A ver o amante, que por ti suspira.
Travessa como sempre, e bandoleira,
Nos teus labios constante paira o riso,
E o brando olhar e a boca feiticeira
De delicias promette um paraiso.
Mas ah! que essa apparencia tão fagueira
Dá morte ao coração, dá morte ao siso...
Foi breve o nosso amor, mas devorante
Como o incendio, que um vento impetuoso
Assopra na floresta,
Que lavra furioso, e n’um instante
Tudo aniquila; e do vergel frondoso
Sómente a cinza resta.
Sobre meu peito a leve cabecinha
Um dia reclinaste,
Mas sem saber que n’elle se continha
Um coração, qual nunca suspeitaste;
Mal pensando, que fogo alimentavas,
Sobre um volcão a fronte repousavas.
De meus sentidos na fatal cegueira
Eu tomei por amor teus desvarios;
E por mais que sorrisses-me fagueira,
Aos beijos meus achei teus labios frios.
As faces tuas encostaste ás minhas,
Mas não me déste a alma, que a não tinhas.
Ah!... bem cedo entendi que me embaías
Com teus risos e afagos seductores;
Que essas caricias frias
Tambem davas a outros amadores,
E como um sol a todos aquecendo,
Teus mimos e favores
A uns e outros ias concedendo.
Inda bem que esse amor durou tão pouco!...
Meu coração de angustias estalava...
Ardendo em raiva, de ciumes louco,
Veloz me arrebatava
Meu rapido corsel,
Transpondo brenhas e galgando serras,
Para bem longes terras,
Para longe de ti, minha infiel!...
Porém não quero já com vãos queixumes
O prazer destruir que hoje me trazes;
Oh! não! sem recordar velhos ciumes
Façamos hoje as pazes.
Como se lança um manto funerario
Sobre o livido rosto de um finado
Para occultar-lhe a feia hediondez,
Assim do olvido o gelido sudario
Sobre as desgraças e erros do passado
Lancemos de uma vez.
Se eu agora lembrei-te taes loucuras,
Comigo não te enfades,
Que a despeito de tuas travessuras
De nosso amor me lembro com saudades.
Oh! recordemos antes as delicias
Que me déste a sorver; — as noites breves,
Que amparárâo com sombras tão propicias
Prazeres, que do tempo as azas leves
Depressa nos roubárão,
E d’elles só lembrança nos deixárão.
Ouvir dos labios teus hoje desejo
Doces palavras, que disseste outr’ora;
Quero mostrar-te n’um fervente beijo,
Que minha alma té hoje inda te adora.
Sobre os joelhos meus vem pois sentar-te,
Bem como outr’ora; — quero um só instante
Beijar-te o riso, e as graças contemplar-te...
Vê... minha fronte fervida, anhelante,
No doce afan de amor perdido o siso,
Inda nos seios morbidos descahe-te;
Cinge-me ao peito teu, dá-me um sorriso...
Toma este beijo, e vai-te...