Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Sonetos

Sonetos


I

A meu Pae doente

Para onde fores, Pae, para onde fôres,
Irei tambem, trilhando as mesmas ruas.
Tu, para amenisar as dôres tuas,
Eu, para amenisar as minhas dores!

Que cousa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as arvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Maguas crescendo e se fazendo horrores!

Maguaram-te, meu Pae?! Que mão sombria,
Indifferente aos mil tormentos teus
De assim maguar-te sem pezar havia?!

— Seria a mão de Deus?! Mas Deus emfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de maguar-te assim!

 

II

A meu Pae morto.

Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o officio da agonia.
Meu Pae nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que elle dormia,
E disse á minha Mãe que me dizia:
«Acórda-o»! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E sahi para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abysmo de belleza,
Nem uma nevoa no estrellado veu.

Mas pareceu-me, entre as estrellas floreas,
Como Elias, num carro azul de glorias,
Ver a alma de meu Pae subindo ao Ceu!

III

Pôdre meu Pae! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pullulam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hydra
A uma só lei biologica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam.
Com a invariabilidade da clepsydra!

Podre meu Pae! E a mão que enchi de beijos
Roida toda de bichos, como os queijos
Sobre a meza de orgiacos festins!..

Amo meu Pae na atómica desordem
Entre as boccas necróphagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!