Com a arrancada do machinho, bem a contragosto do Benício, ficaram outra vez sós os dois moços.

Mas a poucos passos de distância cruza a volta que desce para o vale.

— Aqui, peço licença para separar-me, disse Ricardo.

— Não passa o dia conosco?

— Há de me desculpar; tenho necessidade de estar em casa.

— Já vejo que não esqueceu!

— O quê?

— A impertinência de há pouco.

— Oh! minha senhora!

— Tem medo de outra cena igual.

— Que ideia!

— E eu me não posso queixar.

— É uma injustiça que me faz, D. Guida.

— Há um meio de convencer-me.

— Qual?

— Passe o dia conosco.

Ricardo hesitou um instante.

— Passarei, disse naturalmente.

Refletiu que se persistisse em retirar-se naquele momento, deixaria no espírito da moça a convicção de o haver ofendido, e o desgosto que sempre causa a suspeita de ter decaído da estima de um homem sisudo.

Que necessidade tinha de humilhar essa moça, de quem afora um instante de contrariedade naquela manhã, só recebera amabilidades e delicadezas? Eram mais algumas horas de constrangimento, que lhe custava essa condescendência.

— Agradeço-lhe de coração, respondera Guida. Em outro dia sua companhia me seria agradável, como sempre.

Ricardo inclinou-se:

— Hoje se não jantasse conosco, eu ficaria triste, acrescentou a moça com um cândido sorriso.

— Então fique alegre, replicou o moço retribuindo o gracejo.

— E estou!

Uma terceira voz misturou-se ao diálogo:

— Então a excelentíssima não quer aceitar?

Era, não carecíamos dizer, o incansável Sr. Benício, que tendo afinal conseguido sofrear o chouto do machinho, voltara atrás; e aproximando-se sem que o percebessem, ali estava de espinhaço arqueado e braço estendido, a empunhar o guarda-sol, em posição de archeiro.

Desta vez Guida não respondeu-lhe e seguiu adiante. Voltou-se então o Benício para Ricardo e apresentou-lhe a veneranda barraca:

— Sr. doutor, V. S.a é servido?

— Não; obrigado.

— Olhe que o sol está pelando.

— Nem por isso! Ao contrário, acho bem fresca a manhã! Fizemos um passeio magnífico. Não gosta da Vista dos Chins?...

— Faça favor! insistiu o obsequioso Sr. Benício com o guarda-sol.

— É um panorama admirável; não creio que haja no mundo uma tela igual, a não ser uma que eu conheço de fundo verde-gaio, por detrás da qual se desenha a figura de Mefistófeles. Não a que representa no drama de Goethe, mas uma que aparece na farsa do Judas em sábado de aleluia.

— Tenho muito gosto! acudiu imperturbável o Sr. Benício metendo à cara do advogado o chapéu de sol.

O riso cristalino de Guida que, ao remoque do moço, trilara como um colar de pérolas a desfiar-se, desatou em risada com a réplica do amanuense.

Ricardo tinha dois fins, travando conversa com o Benício, e falando-lhe em linguagem que para este era grego ou hebraico.

Conseguia em primeiro lugar reter junto de si aquele algarismo social, que tinha naquele momento a grande importância de uma unidade; somada ao número dois fazia três.

Além disso defendia-se da serrazina dos oferecimentos com que o ia apoquentar, e nada obstava a que tratasse de rir-se em vez de amofinar-se.

— Olhe! não me incomoda.

— Já conhecia a Vista Chinesa, Sr. Benício?

— Vim uma vez o ano passado, e por sinal que fazia um sol de abrasar como agora, e eu ofereci o meu guarda-sol ao Dr. Nogueira, o que valeu-lhe bem! Aceite, tome o meu conselho!... concluiu o amanuense enristando de novo a cana para investir contra o advogado.

Apanhado de surpresa, quando pensava que o Benício ia divagar, protestou Ricardo não cair mais no logro de escutá-lo; e tomando a palavra começou a fazer ao companheiro a descrição pitoresca da Tijuca.

— Mais bonito do que a Vista Chinesa, é o Bico do Papagaio. Ali é que eu o queria ver, Sr. Benício, para comparar os dois picos. No de lá há justamente por cima do nariz da pedra uma árvore que finge bem um chapéu de sol!

— Não faça cerimônia, sr. doutor! atalhou o Benício voltando à carga.

O amanuense divertia à maneira das caricaturas, que depois de vistas, se tornam monótonas.

Assim era o nosso homem quando ele exibia algum de seus perfis, de um cômico irresistível; mas à força de reproduzir-se com a regularidade do autômato, caía em uma insipidez esmagadora.

Não tardou que Ricardo sentisse invadi-lo o tédio a ponto de não poder mais suportar nem a vista do amanuense. Para subtrair-se a esse foco de aborrecimento, apressou o animal:

— É de primeira força! disse Guida lendo-lhe no rosto.

— Com efeito! Não imaginava!

— Há pouco não dizia o senhor que a vontade ou o capricho é um rei? Pois tem destes cortesãos!

— Ah! É preciso! São os cortesãos que vingam os oprimidos; quando não comprometem, intrigam ou traem os soberanos, ao menos lhes moem um pouco a paciência.

— Não duvido da utilidade dos cortesãos, respondeu sorrindo a moça. Mas quanto à sua comparação, não a acho exata. A respeito de capricho há de concordar, que devo entender alguma cousa.

— Muito!

— Por uma simples razão! Sou muito caprichosa.

— Não acredito!

— Se eu confesso!

— Por isso mesmo.

— Há de mudar de opinião.

— Bem, pode ser. É a moda.

— O capricho está bem longe de ser rei. É apenas o valido, o primeiro ministro ou presidente de conselho, a quem o rei eleva acima dos outros súditos para ter o prazer de o contrariar, de picar-lhe a vaidade, de crivá-lo de alfinetes como ao Sr.***

Guida pronunciou o nome; eu porém que não estou para divulgar a malignidade, e comprometerme com gente poderosa, substituo-lhe a reticência estrelada.

— Mas quem é o rei desse valido? perguntou Ricardo.

— O rei? É o mundo, e portanto qualquer pessoa. Pode ser o senhor, por exemplo.

— Eu?

— Por que não? Vou lhe confessar uma fraqueza minha. Eu tenho neste momento três desejos... Não cuide que são os da caixinha do jogo de prendas.

— Ainda bem; eu já me tinha lembrado do Sr. Benício e de seu chapéu de sol.

— Qualquer desses três desejos depende do senhor; entretanto eu estou certa que não é capaz de satisfazer a nenhum.

Estava Ricardo surpreso ao último ponto da direção que tomara a conversa; mas o modo natural de Guida, e a garridice com que falava, o punham a gosto.

— Está me metendo em brios, notou o moço a rir.

— Também tenho a minha diplomacia.

— Mas enfim sem conhecer os tais desejos, é que nada posso dizer.

— Decerto! Há quase um mês, que estão me tentando! E eu perderia esta ocasião de acabar com eles; pois bem, convencida de que não posso satisfazê-los...

Guida levou a mão aos lábios e soltou um arrulo gracioso, que pareceu, com o gesto, desfolhar nos ares:

— Prrrr!... solto-lhes as asas e... Adeus, pombinhos!

— Quem sabe?... A senhora está figurando a cousa como muito difícil, para sazonar o gostinho. Aposto que eu vou, como a lâmpada de Aladino, realizar esses grandes desejos, o primeiro dos quais eu já adivinhei.

— Ah!

— É tirá-la da sombra implacável de um monstro verde-gaio...

— Ora! Eu já nem me lembrava disso.

— Bem; já vejo que não sou forte na adivinhação; o melhor é escutar.

— E não interromper; porque já estamos perto de casa. Quem sabe se não é também diplomacia para ganhar tempo?

— Estou mudo como um reposteiro.

— Pois ouça. O primeiro desejo era, note que eu não digo é; era que o Galgo fosse meu.

— Não vejo a impossibilidade.

— Eu lhe mostro. Se papai quisesse comprá-lo, o senhor recusaria vendê-lo.

— Certamente.

— Era o único meio.

— Perdão; há outro.

— Não há mais nenhum. O senhor não podia nem pensar em oferecê-lo a pessoas com quem não tinha relações íntimas; e menos agora, depois desta confissão. Portanto é impossível.

— Assim, decerto.

— Passemos ao segundo.

— É verdade, ainda restam dois desejos.

— O meu segundo desejo... Promete não desconfiar? disse Guida voltando-se para ele com gentileza.

Ricardo teve uma suspeita de que a filha do banqueiro o estava debicando, como costumam as moças bonitas e prendadas, para mostrarem espírito e darem expansão à natural petulância de um coração de dezoito anos. O primeiro impulso foi retrair-se; mas não se deixou levar dele; seu caráter sério não o inibia de aceitar com a moça esse desafio de garrulice.

A borboleta queria voejar, ostentando suas roupagens magníficas e farfalhando as asas sussurrantes. Não havia ali flor, que libasse; pois seria ele o pretexto desse inocente devaneio, do qual também de sua parte contava participar.

— Desconfiar?... Fique descansada; não quero passar por provinciano duas vezes no mesmo dia.

— Lembra-se da primeira vez em que nos encontramos? perguntou Guida.

E fitou no moço um olhar, que esperava a resposta da interrogação.

— Foi aqui mesmo na Tijuca! disse Ricardo.

Assomou à face um leve rubor, que o olhar de Guida evitou, mal o percebeu.

— O senhor estava muito embebido a olhar a florzinha amarela...

— Sim; a da Pedra Bonita?

— Essa mesma.

— Admirava. É um mimo essa flor.

— É uma joia, é; mas deixemos a flor por enquanto. Eu também tenho paixão por ela e a admiro. Mas o senhor admirava e fazia outra cousa.

— Não me recordo.

— Eis um recurso de que não precisa.

— Tem razão. E por que hei de negar? Beijava-a: está satisfeita?

Guida fez com a fronte um aceno afirmativo:

— Cuidei que essa poesia do sentimento que faz conversar com uma estrela, beijar uma flor, adorar uma lembrança, já não se encontrava hoje em dia, a não ser nos romances. Se alguma vez se misturava com o prosaísmo desta nossa vida fluminense, era a moda de comédia de sala: para divertir as moças da moda, que chegaram aos dez anos e já não podem mais suportar as bonecas. Ora, desta última suposição, está claro que não se trata. A causa portanto é séria.

— Muito séria, acudiu Ricardo.

— Confessa?

— Há nada mais sério e real do que a fragilidade humana? Eu lhe conto a história dos “Sonhos d'ouro”. É assim que chamo a florzinha amarela...

— O nome é bonito!

— Se tem outro, não sei, eu dei-lhe este. É bonito e lembra uma cousa muito agradável. “Sonhos d'ouro”!... A senhora não pode ter esse prazer; Deus, dando aos ricos a opulência, negou-lhes a ardente esperança de a obter, e reservou-a como uma compensação para nós, os pobres. É somente para nós que essa fada incomparável levanta os suntuosos castelos, os jardins encantados, os paraísos na terra. Quando a senhora me viu, eu entrava no mais belo de meus castelos, à vista do qual o rico palácio que seu pai tem nas Laranjeiras é um albergue; subia as escadas de pórfiro marchetadas de ouro. Abriam-se de par em par as portas de rubi da sala da saudade; e minha mãe aparecia-me sobre um trono de safiras. Atirei-me a ela, que recebeume em seus braços, beijei-lhe os olhos, coalhados de lágrimas, e... A senhora acordou-me.

— Ah! Compreendo. Lembrava-se de sua mãe. Nessa poesia também eu creio, disse Guida com terna expressão.

— Dirá a senhora que é uma infantilidade cair assim um homem feito, um doutor, a sonhar com o sol alto e os passarinhos a cantar. Mas a isso respondo, que a natureza humana é esta mesma contradição. O menino tem “homenices”... Não repare no termo; tenho um mau costume de inventar uma palavra quando não acho outra já feita para exprimir meu pensamento. Mas dizia eu que o menino tem suas “homenices” que o tornam insuportável; portanto era preciso que o homem tivesse suas “meninices”, que o tornam ridículo.

— Pensar em sua mãe ausente é uma cousa tão santa!

— Mas creio que ainda falta um desejo?

— Ainda; não me esqueci. Ia perguntar-lhe o que representava o desenho... Sabe; aquele que o senhor fazia à janela?...

— Não adivinhou?

— Não.

— Quis mandar à minha mãe uma lembrança de meu sonho. Se eu tivesse talento de retratista reproduziria suas feições. Fantasiei uma moça da corte.

— Favoreceu o original, observou Guida. Galanteria de artista.

— Não era possível. Ainda que eu fosse Rafael.

— O melhor juiz sou eu. À vista do desenho...

— Eis a dificuldade. Já ele está em São Paulo.

Foi interrompida a conversa pelo encontro com o rancho dos passeantes, a poucos passos de distância da casa.

Talvez tenha alguém a curiosidade de saber o que era feito do impertérrito Sr. Benício durante todo esse tempo.

Em posição e a jeito de proteger os dois moços com o formidável guarda-sol verde-gaio, acompanhou-os passo a passo sempre da banda do poente.

Refocilando no gosto incomparável de obsequiar o próximo, caíra em uma espécie de êxtase. Imaginava-se, não em cima do machinho a trotar, mas recostado nas almofadas de um coche, acompanhando um casamento.

Que glória não seria a dele, quando dissesse aos convidados:

— Eu os resguardei com o meu chapéu de sol, no primeiro dia do seu namoro!