Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos, embora, tens um grande espírito sugestivo.

Os jornais andam cantando a tua verve flamante, pertences a uma seita de princípios transcendentais.

Na tua terra os cretinos gritam, vociferam.

Não sabem o que tu escreves. Não entendem aquilo... Palavras, palavras, dizem.

Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão profunda firmeza artística, que não te abalas com a vozeria que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria viva das idéias.Não recuas, escreves.

Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto, original, surpreendente, vais arrancar à nevrose da composição, encrustar, como pedrarias, na escrita cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras com verdadeira êxtase de uma devotada seita religiosa.

E, apesar das frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso, conquanto simules o contrário, sempre te desvanece.

Então, para que o teu esplendor seja maior e mais completo, andas a preparar um livro de estilo nobre e que, segundo pensas nas horas de nervosismo psíquico, há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba triunfante dos imbecis.

E assim, com a tua elevação mental e disciplina, julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a pompa das idéias!

O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o mais elegante coupé tirado por éguas de raça, de amplas ancas carnudas e luzidias, cheias de nervosidades, de altivezes bourbônicas, com um fino sentimento mulheril nas linhas, tudo isso, Artista, não vale a página mais simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação de estilo, que tu, por acaso, escrevas.

Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do mundo pelo livro que daí a meses deve entrar para o prelo.

Os reclamos soam pelos jornais, como clarins. Andam já longe. Caminham. Chega já ao domínio de todos a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra. Vai aparecer, brevemente, cintilante, a duas cores, em tipos Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin, nas lustrosas vitrinas, acendendo um clarão em torno do teu nome, como um facho de fama.

Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo. Sentas-te na poltrona junto à orquestra. Num intervalo suas demasiadamente. Estás abafado do calor da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes. Um sorvete, um gelado.

E, seguro de teu vigor de mocidade, da tua saúde e do radiante rubor do teu rosto, que é admirado na rumorosa cidade onde habitas, tomas, sem o maior receio, o gelado que te trazem.

Daí sentes-te logo como que atordoado.

Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a espinha. Vertigens cálidas fisgam-te a cabeça. Ardem-te os olhos e se umedecem sob a luz flagrante e crua da ribalta;mesmo o gás te dá mais febre; parece que te estalam as fontes, latejando fortemente - e tu não podes mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala iluminada e cheia de multidão matizada que formiga e aplaude.

Então, um de teus amigos te conduz à casa, já abatido e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias, corre a dolorosa notícia, - ó amargurado Espírito moderno! - de que morreste de uma pneumonia aguda...

E após a tua morte ainda se haveria de contentar o teu merecimento. Muitos diriam:

— Também não deixou um livro que significasse a sua individualidade.

E outros responderiam:

— Mas deixou escritos nos jornais.

— Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o curto espaço de um minuto ou de um segundo e, muitas vezes, até sem os lermos, com os mais resplandecentes pensamentos contidos em suas colunas, os deitamos pela janela fora... Um livro sintetiza qualquer individualidade. Não se pode acreditar, portanto, não há documentos que atestem, criticamente, o valor intelectual desse escritor que morreu...

Daí então, só no preciso decurso de tempo para o teu cadáver apodrecer na soberana indiferença da terra, aparece o teu livro, aquele mesmo onde tanto trabalhaste, que fecundaste de idéias, onde tanto derramaste o vivo poder de teu cérebro, onde consumiste uma porção de sangue e de nervos, assinado, e com outro título, por uma vulgaridade batráquia, na qual toda a gente acredita, e, oh!! comparando-a contigo, acha-a mais superior, extraordinária, sem igual até.

E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra, sem nunca teres vencido! com ironia dessa glória de néscio a rir de ti, perpetuamente, à chuva, aos vendavais e ao sol, do alto da tua cova!