Flores do Mal/Tédio
LXXX
Tédio
Tenho as recordações d’um velho milenário!
Um grande contador, um prodigioso armário,
Cheiinho, a abarrotar, de cartas, memoriaes,
Bilhetinhos de amor, recibos, madrigaes,
Mais segredos não tem do que eu na mente abrigo.
Meu cer’bro faz lembrar descomunal jazigo;
Nem a vala comum encerra tanto morto!
— Eu sou um cemitério estranho, sem conforto,
Onde vermes aos mil — remorsos doloridos,
Atacam de pref’rência os meus mortos queridos.
Eu sou um toucador, com rosas desbotadas,
Onde jazem no chão as modas despresadas,
E onde, sós, tristemente, os quadros de Boucher
Fruem o doce olor d’um frasco de Gellé.
Nada póde egualar os dias tormentosos
Em que, sob a pressão de invernos rigorosos,
Tédio, fruto inf’liz da incuriosidade,
Alcança as proporções da Imortalidade.
— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d’um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sôno misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!