Ao passar pela garganta de dous outeiros pedregosos, que formavam abraçando-se uma estreita e úmida charneca, Berta bateu com força as palmas das mãos breves e delicadas.

Ouvia-se perto um ornejo soturno, que mais parecia gemido; e logo depois surdiu dentre o maciço da folhagem a enorme orelha de um burro, que a muito custo movia o passo trôpego. De magreza extrema, ressaltavam os ossos a modo que pareciam prestes a furar-lhe o couro. Era propriamente uma carcaça, coberta com espessa crosta da lama, onde o animal estivera deitado e lhe secara no pelo.

A outra orelha, que não aparecia, a perdera ele na mesma ocasião em que de uma foiçada lhe vazaram o olho esquerdo, levando-lhe boa parte da cabeça. Parece que o arteiro do burro conseguira furar a cerca da roça de um caipira, e regalava-se de milho verde e tenra fava. Mas saiu-lhe cara a gulodice.

No mísero estado em que o pusera o caipira, pôde, arrastando-se, chegar àquela charneca, onde se deitou, quase moribundo, em um brejal. Com pouco os urubus vieram pousar nas ramas da imbaúba.

Acaso passou Berta pelo caminho e ouvindo gemidos, foi, guiada pelos abutres, dar com o animal agonizante no meio de uma touça de junça. Movida de compaixão, venceu a natural repugnância que lhe devia causar o aspecto da ferida para lavá-la e cobrir com folhas de fumo atadas por embira.

Do fumo sempre ouvira falar como remédio para todos os achaques. Se não servisse para ferimentos, em todo o caso guardava o talho contra as moscas e tavões.

Repetiram-se estes cuidados, até que afinal começou a ferida a cicatrizar; mas deixara o burro em tal lazeira, que ainda era duvidoso se escaparia. Não desanimou Berta, em cuja alma se produziam na maior efervescência os transportes dessas abnegações veementes, que são para certas naturezas uma necessidade irresistível de expansão.

— Coitado do cotó! Ainda está muito magricela?... disse a menina com um carinho compassivo.

E tirou do saco meia dúzia de espigas de milho, que o animal devorou com uma gana de convalescência.

Debulhado o último sabugo, farejou o burro o saco, donde se escapavam umas exalações que lhe pruíam agradavelmente o olfato.

Rindo, outra vez meteu Berta a mão no seu inesgotável saco, e trouxe um punhado de farinha que o burro lambeu-lhe das palmas. Dando então uma ligeira tapa na belfa do animal, deitou a correr pelo campo fora seguindo a mesma vereda.

Atrás de um fraguedo, cuja falda atravessava o leito do rio, abrolhando-lhe a corrente, existia naquele tempo uma casa em ruína. Já tinha desabado metade da parede do sótão e o telhado abatia aos poucos, rompendo os caibros podres.

Da cozinha, que ainda se conservava em bom estado, com exceção da porta já tombada ao chão pela ferrugem das dobradiças, saía um som roufenho e soturno, como o grunhido de um porco. Acocorada a um canto, com o queixo sobre os cotovelos fincados ao peito cerrando a cara, descobria-se uma criatura humana, dobrada sobre si a modo de trouxa.

Era uma preta velha, coberta apenas de uma tanga de andrajos, e que resmoneava, batendo a cabeça com um movimento oscilatório semelhante ao do calangro. De tempo em tempo desdobrava um dos braços descarnados, insinuava ligeiramente a mão pela espádua, e fazia menção de matar uma pulga que imaginava ter presa entre o polegar e o indicador.

Havia algum tempo já que Berta parara à porta da cozinha, sem que a estranha criatura desse o menor sinal de a ter percebido.

— Zana! disse afinal a menina.

Estremeceu a negra, e pôs-se à escuta daquela voz, como se viesse de longe, de bem longe, e só mui de leve lhe ferisse as ouças. Não se repetindo o chamado, voltou à primeira posição, e continuou a resmonear, abanando a cabeça coberta de uma carapinha grisalha da cor de lã churra do carneiro.

Entretanto Berta aproximou-se de uma prateleira que havia na parede, junto ao fogão, para esvaziar ali o resto do saco. No velho alguidar esborcinado, deitou a farinha de milho; e sobre a tábua algum feijão e torresmos de carne de porco, embrulhados em folhas de couves.

Recostando-se então à aba da prateleira, a menina com os olhos fitos na preta começou em um tom brando e suavíssimo a repetir este acalanto:


Cala a boca, anda, nhazinha,
Ai-huê, lê-lê!
Senão olha, canhambola,
Ai-huê, lê-lê!
Vem cá mesmo, Pai Zumbi,
Toma, papa nhá Bebê!


À proporção que a menina cantava, à preta desrugava-se o rosto contraído por um espasmo, que lhe deixara impresso no semblante alguma profunda angústia. Uma vaga expressão de sorriso chegou a iluminar aquela fisionomia bruta e repulsiva. Os olhos pouco antes baços e quase extintos desferiram um lampejo, e vagando um instante pelo aposento, se fixaram enfim no vulto de Berta.

— Bebê!... regougaram os grossos beiços da negra com uma voz que não parecia humana, embora repassada de extrema doçura.

Depois arrancou do peito cavernoso a mesma toada do acalanto, cujas palavras truncava por forma que somente se percebia delas a sonância confusa e estranha. Dir-se-ia que ela cantava em algum dialeto africano, tão bárbara era a pronúncia com que se exprimia.

Entretanto fora dela mesma que Berta aprendera a cantilena por tê-la ouvido repetir muitas vezes. Imagine-se que esforço de paciência e atenção não fora necessário à menina para decifrar entre os sons ignotos e quase inarticulados, as palavras da cantiga, que ela dantes nunca ouvira.

Mas a pobre louca era uma das misérias sobre que se derramava como bálsamo a alma de Berta. Desde criança se habituara a passar aí algumas horas, de quando em vez; tornando-se moça vinha regularmente duas vezes por semana visitar a sua protegida e trazer-lhe o sustento.

Esperou Berta com a maior paciência que Zana acabasse de cantar; e então mostrando-lhe as provisões, conseguiu que ela comesse alguns bocados, dados por sua mão. Para que a doida abrisse a boca, porém, era necessário que a menina estivesse a repetir de momento a momento duas palavras que pronunciadas por sua voz carinhosa produziam sobre esse espírito enfermo um efeito mágico.

— Zana, bebê!...