catana; e começou a esgrimi-la cortando o ar.

O capanga avançava lento, mudo, sombrio, sem arma em punho, nem sequer um gesto de ameaça; e, todavia, era ele Gonçalo, apesar de armado, quem recuava diante daquele vulto impassível.

Afinal, o pulso do Suçuarana, fatigado de cutilar o vento, afrouxou. Não teve ele tempo de pressentir o perigo; colhido pelas espáduas girou no ar e foi abater-se no canavial abrasado onde o arrojara o braço pujante de Jão Fera, que antes de arremessar o corpo, o havia estrangulado.

Nesse momento conseguira erguer-se Luís Galvão. Recobrando gradualmente os sentidos, observara o fazendeiro o fim da luta, e compreendera que devia a existência a Jão Fera.

Este fitava a labareda que envolvera o corpo do Suçuarana. Espessa e carregada de grosso fumo, a chama se arrastava como a jibóia que lambe a presa para traga-la; mas outra vez ligeira e farfalhante desprendeu-se no ar como a língua da serpente; e fendendo-se mostrou no meio do brasido o corpo já calcinado do fanfarrão.

Um sorriso de feroz volúpia franziu os lábios do capanga, que ficou um instante absorto naquele intenso prazer. Recobrado afinal, voltou-se com a idéia de correr além, e deu com Luís Galvão, que estendia-lhe a mão:

— Você me salvou, Jão! Obrigado!

— Salvei; mas não sabe por que? respondeu o capanga com a fala soturna, cravando um duro olhar no semblante do fazendeiro.

Este ia responder; Jão atalhou-o.

— Livrei-o de morrer, porque sou eu quem o há de matar, quando chegar sua hora!

Lançando-lhe estas palavras com desprezo, voltou as costas o capanga para afastar-se dali.

— Tanto mal quer-me você, Jão?

O Bugre estacou sofreado por uma força íntima a que ele tentava resistir; depois de curta hesitação, arrojou-se em frente do fazendeiro para dizer-lhe com a voz dilacerada pela cólera:

— Mais de cem vezes já eu teria cravado em teu coração esta faca, se não fosse aquela que está no céu, e a filha que deixou na terra. Vê que raiva sinto eu quando me lembro que tu ainda vives!

Rangiam os dentes do capanga; e, todo ele convulso de furor, ameaçava o fazendeiro com a sanha de um tigre.

Ainda desta vez, porém, conseguiu dominar-se. Arrebatando-se ao ímpeto que já o arrojava sobre Luís Galvão, deitou a correr por um carreador que invadira o incêndio; e desapareceu por baixo das abóbadas formadas pelas chamas.

Com antecedência fora Jão Fera sabedor da trama urdida pelo Barroso. Desde que o Chico Tinguá o advertira do perigo, o Bugre, sempre alerta, redobrara de vigilância e não perdeu mais de vista a seus inimigos.

Assim havia surpreendido o segredo da maquinação de Barroso; e naquela manhã assistira, oculto no mato, à última combinação entre os cúmplices.

Já tinha o capanga na cinta o dinheiro preciso para desempenhar sua palavra, e esperava o momento de ajustar contas com o Barroso. O plano horrível excitou a ferocidade dessa alma, desde algum tempo sopitada pela influência de Berta.

Que esplêndida vingança não lhe preparava o inimigo com o terrível incêndio, que ia servir-lhe, a ele Bugre, de fogueira de São João para divertir-se também naquela noite de tanto folguedo?

A desolação e a ruína o deleitavam; ao calor das chamas, ouvindo resfolgar a labareda e agonizar os infelizes por ele arremessados ao fogo, ele sentia a inebriação da morte, e sua alma esvoaçava como a do vampiro, sobre os destroços do incêndio.

Desde o começo, acompanhava ele a realização da trama; vira o Gonçalo postar os companheiros, atear o fogo no canavial, e emboscar-se à espera do fazendeiro. A princípio nem lhe passara pela mente livrar Luís Galvão da morte que o ameaçava; mas a idéia de que Berta, ignorando a verdade, podia atribuir a ele esse assassinato, o estremeceu e impôs-lhe a dura necessidade de salvar o homem a quem mais odiava.

Escapara de chegar tarde, porque se demorara um instante em agarrar Monjolo. O africano, vendo Faustino atado de chofre como um feixe de sapé e pinchado ao fogo, escafedeu-se; mas, a pequena distância, caiu arpoado pela faca do Bugre.

Empurrando esse trambolho ao fogo, correra então o Bugre ao lugar em que havia deixado o Gonçalo de espreita, e onde acabava de passar a última cena.

Agora lá ia à busca do Barroso, que devia estar do outro lado do canavial, pronto a aparecer no momento preciso, e ao sinal convencionado, para representar a farsa, que havia de rematar o drama sanguinolento.

Quando Jão passou pela orla do canavial e que a chama bateu-lhe em cheio no semblante, Barroso o reconheceu e fugiu espavorido. Mas o capanga ia-lhe no encalço, e infalivelmente o alcançaria.

Esbaforido, prostrado de cansaço e de terror, o miserável se deixara cair em um fojo coberto de juncos e moitas; e, resignado, esperou a morte, que ele sentia aproximar-se no passo rápido do Bugre.

Nesse momento chegava Miguel, que a meio caminho de casa e surpreendido com o clarão do incêndio, voltara a correr na direção das Palmas.

Por um impulso generoso parou para defender o perseguido; e Jão Fera esbarrou de rosto com ele.

Três vezes o Bugre arremeteu e três vezes o brioso mancebo tomou-lhe o passo, resolvido a sacrificar-se antes do que deixar consumar-se o crime.

— Deixe-me passar, moço! bramiu o capanga rangendo os dentes.

— O que eu sinto, monstro, é não ter uma arma para castigar-te.

Rugiu o Bugre, e saltou sobre o mancebo, que o esperou calmo e resignado a tudo, mas sem recuar o passo.

Salvou-o um grito de Berta. A menina tinha acompanhado de perto a Miguel, deixando atrás nhá Tudinha, que não a pudera seguir.

Ouvindo a voz da menina, o capanga como se o espancasse a cólera celeste, disparou pelo campo fora e desapareceu.